Revista ENFIC

Revista do Encontro Nacional
e Internacional de Filosofia Clínica

Transcendência e alteridade

Transcendência e alteridade
Manuel Cândido Pimentel
Centro de Estudos Filosóficos e Humanísticos
Universidade Católica Portuguesa

O significado variado da transcendência e a sua presença em contextos de saber muito diferentes, da gnosiologia à teologia, apresenta um problema que é mais do que semântico. Isso ocorre todas as vezes que se procura definir a transcendência de um modo geral quando, em verdade, ela deve ser definida em função dos contextos da sua aplicação: ela significa o que significa desde a relação com a imanência, que constitui uma tendência para a orientação do seu sentido, até à relação de sublimidade com o ser e o ser do ser divino, instâncias que propriamente ditas significam aquilo que eu chamo de uma transalteridade.

Por este último conceito afasto as alteridades imanentes ou transcendências imanentes do uso fenomenológico de Husserl. Assim, por transalteridade significo a transcendência como a nuclearidade monádica e pessoal de outrem, a que assistem lógicas de compreensão além das da imanência e muito além da binariedade do eu-tu, que em fenomenologia é suportado pelo regímen imanentista do mesmo, no qual o outro se constitui como um advento singular do ego cogito, um tu nunca verdadeiramente afirmado como alteridade transcendente, sempre dito nas correlações identitárias do eu ou a partir de elas.

A questão condutora da transcendência é a questão pelo sentido, do ser aos porquês da existência, que, de um modo geral, sob o luar da consciência, cada um de nós, de uma forma ou de outra, balbucia. De certo  modo, perguntar pelo sentido é perguntar pelo fundamento e perguntar pelo fundamento é anunciar a pergunta pelo ser dos seres, como o que os constitui e determina na sua estrutura de entes. Pensar adequadamente o fundamento significa pensar a sua questão essente, a da emergência do sentido. O fundamento como raiz mesma do sentido ecoa e vibra em toda a interrogação sobre o ser e o existir, pelo que a perda do sentido é uma perda de fundamento ou uma perda de raiz, um desenraizamento. Toda a questão do fundamento é governada pelo princípio de imanência, que designa a ordem do fundamento como a instância mesma que requisita a diferença ontológica entre o ser e os seres. Instituidora da diferença ontológica, a ordem do fundamento é sempre a da tensão original entre a imanência e a transcendência, um dinamismo que surge sobretudo da imanência como vetor a apontar para a transcendência. É assim que o fundamento deve ser completado pelo firmamento, tal como propunha o pensador português Álvaro Ribeiro, atentos a que devemos estar à ideia de completude e de perfeição dinâmicas que existe entre o Planeta e a abóboda celeste ou entre o mar e a linha do horizonte a projetar-nos para o infinito e para cima.

O âmbito da interrogação pelo sentido do ser (implicadamente pelo da existência) recebeu a atenção de um Heidegger, que, em 1929, na conferência «Sobre a essência do fundamento», mostra que a questão pelo fundamento carece de ser colocada no âmbito da transcendência, entretanto vista como a constituição fundamental do ser-aí (Dasein). Sob este ponto de vista, o filósofo alemão ligava este seu conceito de transcendência ao «mundo» e ao «ser-no-mundo», significando, de modo geral, que o Dasein é o ente que labuta com o sentido do ser e, como tal, transcende de forma compreensiva todos os entes, sem se perder entre eles. É assim que o ser-aí pode transcender ao mesmo tempo que se mantém um mesmo. Sendo mesmidade e permitindo alteridade, ele se mostra como o mundo enquanto simultaneamente é o lugar para todos os entes e o espaço para a questão pelo fundamento.

Se acerta em levar a questão da diferença ontológica à questão do fundamento, cumpre ver que, em Heidegger, a transcendência de que fala é sempre dita e situada no horizonte da imanência, que é, identicamente em Husserl, o horizonte da mesmidade do mesmo, tal como haveria de acusar, com sentido crítico, Lévinas, o filósofo que, no Ocidente, mais longe levaria o questionamento sobre a transcendência, fazendo sobre esta descer a conceção do infinito para pensar uma alteridade que só tem sentido a partir da própria transcendência. Se neste ponto admiro a obra de Lévinas, por outro, não aceito dele a perspetiva de reduzir toda a ontologia a uma ontologia do mesmo, o que o levou a situar alternativamente a ética no lugar de uma filosofia primeira. Compreendo que tenha visto na ontologia ocidental e nomeadamente a sua contemporânea, de Husserl e Heidegger aos existencialismos, a história da mesmidade do ser e do imperialismo do mesmo que ocultaram fatalmente o rosto do outro, tornando-o inconhecível e presa do totalitarismo e da violência, tal como, em forma de letra, se expressou no seu celebrado Totalidade e Infinito. Ele ignora, porém, que também a alteridade se aplica concetualmente a traduzir a realidade do ser, donde uma ontologia da alteridade ser exequível para o pensamento abarcando num amplexo alteridade e transcendência para traduzir que também o ser é um outro e que é como alteridade que manifesta a estrutura ôntica dos seres, os plurais monádicos, preservada que fica desde o fundamento, que é o ser, a diferença ontológica entre ser e seres ou entre o fundamento e o fundado. Ora, a estrutura do fundado não cuida aqui de não ser pensada senão como transcendência, e desde o fundamento cujo vetor se orienta para o firmamento. É assim que uma ontologia do fundamento tem o seu natural prolongamento numa ontologia do firmamento, que pensando aí a máxima transcendência – uma transalteridade –, pensa o infinito como o divino.

Lévinas, por ter recusado a ontologia, ficou reduzido a uma visão mais pobre da realidade e a uma conceção antropológica do mundo, vindo o seu pensamento a estanciar num antropocentrismo pela centração exclusiva no ser humano, de que apenas se redime pela ideia do infinito criador. O seu pensamento, neste sentido se dirá, é menos uma ontologia do fundamento do que uma metafísica do firmamento, exatamente pelo lugar que evoca para a ética e pela sua omnividência do absoluto. Este absoluto é, porém, a transcendência judaica e muito menos a transcendência cristã que eu subscrevo e com a qual, pela noção trinitária de pessoa, esbato o abismo do absolutus, no sentido latino de solutus ab omni re, compreendendo o que é em si e por si, para pensar uma sociedade humana de seres transcendentes, de alteridades monádicas, que, como Deus e na analogia com Deus, são outras tantas transalteridades vogando em companhia no abraço amoroso dos mundos que é a existência – a doação de ser ou a dádiva divina do Ser.

Parece-me capital chamar a atenção para a unidade dialética que tenho vindo a exprimir entre imanência e transcendência, ou de fundamento e de firmamento, como realidades em exercício para a compreensão desbalizada da alteridade, a qual, como ficou proposto, serve tanto ao ser como aos seres e serve crucialmente para aquele Único que é origem e fonte de doação. Neste sentido, a prioridade ontológica é da transcendência sobre a imanência, ainda que logicamente esta preceda aquela. Daqui se segue que a imanência é um conceito ambíguo quando entregue a si mesma e desligada da transcendência, pelo que o seu discernimento e a sua possível função cognitiva só verdadeiramente se nos desvelam pela relação com o que lhe é antónimo. Sem relação com a transcendência muito pouco se poderá dizer da imanência, cujo modo de ser é fronteiriço, isto é, estende as suas fronteiras para além de si.

A fenomenologia, por exemplo, é uma filosofia que faz larga experiência da imanência; para explicá-la, recorre a significações de transcendência, ainda que sejam estas entendidas no quadro da prioridade ontológica da imanência. Todo o pensamento husserliano é feito segundo tal prioridade, não só no exemplo acabado do outro como «transcendência imanente», mas também no pensar o cogito como transcendente à corrente de vivências e as vivências como transcendentes ao cogito. Da mesma guisa se dirá dos modos da substância espinosista, cujo dinamismo se faz na base de um conceito de transcendência sem o qual aquele dinamismo pouco seria. A transcendência como relação de imanência ou nesta contada é uma falsa transcendência, e é nesta medida que a fenomenologia e a filosofia de Espinosa, descontando os anos que as separam, alimentam um conceito falso de transcendência, inteiramente contrário, por exemplo, ao cartesianismo, que carece do transcendente para fundar o conhecimento do mundo e a ciência, subtraindo-se de algum modo à lógica do imanentismo que constituiria o cárcere do cogito, se este ali tivesse permanecido sem orientação para o firmamento.

O que quero pôr em evidência é que o imanentismo evoca a ideia de um sistema que nos fecha no interior da nossa própria imanência, cujos dinamismos circulam do centro para a periferia e vice-versa, uma circularidade que é contrária à imanência aberta sobre a transcendência, onde a metáfora geométrica não é a do círculo, mas antes da espiral em ascensão. O imanentismo como negação do vetor da transcendência corrói a inclinação do pensamento para tomar o ser como o que não lhe é adequado, mas o excede. É assim que a imanência, descobrindo a sua insuficiência cognitiva e hermenêutica para o afrontamento do mistério da realidade, deve culminar numa doutrina da transcendência. O contrário disto é a imagem do imanentismo a gerar as tendências congruentes do pensamento para os monismos estáticos, à Parménides, e dinâmicos, à Bergson.

A ilusão imanentista está em fazer crer que a fronteira que se estende além do ser conhecido é o único limite possível para os avanços do pensamento. Mas a inadequação entre o pensar e o ser constitui uma fonte de sugestões e de direções para o pensamento, que também faz a prova da experiência cognitiva, desbordante e transbordante, do mistério ontológico, de como essa experiência é ainda tão vital para o conhecimento do sujeito na sua intrínseca finitude como para o da sua onticidade, enquanto ele e o seu conhecimento estão na verdade do ser ou desta emergem.

A dialética que situa a relação da imanência com a transcendência e toma a primeira orientada pela segunda tem o valor de um método de pensamento. O método de transcendência é uma atitude de pensamento cujo ponto de partida começa pela negação da imanência como instância suficiente para abordar a realidade. É um ver que vê e quer ver mais além, movido pela humildade de aceitar que a realidade é mais do que o pensamento, embora ela se dê somente em termos de pensamento. O simples imanentismo não pode deixar de propor-se como ruinoso para a filosofia, pois que não responde às ultimidades do pensar, que põe necessariamente e sempre o problema do transcendente. Este método tem por irredutíveis os planos ontológicos da realidade, a convencionada matéria, a vida, a mente e a realidade final do espírito, a que atende gradativamente até à existência da mónada na sua identidade de corpo. No quadro tópico do método tem importância fundamental para a caracterização da atitude que é o próprio método a categoria do excesso que, na sua mais forte formulação, consiste na inadequação do ser e do pensar, donde o sentido dialético do próprio método levando o pensamento a reagir às dúvidas que o assaltam e a que responde suscitado pela interrogação perene que é o filosofar. Se bem virmos, o olhar que o método preforma não é medusiano, não petrifica na dúvida ou na aporia, não cousifica na ideia, no sujeito e no objeto, e é, por isso mesmo, um método anaporético. Essencialmente, como método do pensar, vira a sua atenção essencial para a transcendência e suas realidades correlatas.

Não é demais afirmar que o método de transcendência, que assim se opõe passo a passo a qualquer método de imanência, deve muito, nos seus fundamentos, ao criacionismo formulado em 1912 pelo filósofo Leonardo Coimbra. O criacionismo é mais um método que uma doutrina. Menos, pois, que a fórmula de um sistema próprio, que também o é, o método leonardino é um método de pensamento, uma forma, pois, de pensar, mas também de estar, de ser e de agir. O seu modo de ser dialético também aceita que a imanência e a transcendência são conceitos recíprocos para a elucidação do real e para a marcha do pensamento influída pelo verbo transcender.

Todas as vezes que trocamos o eixo da transcendência pelo da imanência fazemos ato de restringir e descarnar a realidade. É precisamente isso que acontece quando caio na tentação contrária de definir o outro pelas lógicas do imanentismo. Isso aplica-se ao ser. Isso aplica-se ao ser humano. Eles têm em comum o que designo por alteridades transcendentes. É como alteridades que os abrigo da violência e do aniquilamento. Como alteridades dimensionam-se eticamente, resistem no seu ser moral como apelo de consciências concretas ao meu cuidado. Isto é tão válido para o ser e o ser humano como para a natureza, que constitui uma alteridade a ser protegida. A razão ecológica fundamental do saber transporta no seu ADN o cuidado do outro como outro. A alteridade só é verdadeira quando a legitimo como transcendente ao mesmo, mesmo que a conhece ou quer conhecer ou com ela comunica ou dialoga.

Reconheço aqui que tem razão Emmanuel Lévinas em pensar o ser ético do ser humano como o que verdadeiramente deverá ser pensado: ele é algo intematizável que resiste ao mesmo e às lógicas do mesmo, situando-se o outro numa relação de não reciprocidade com o mesmo. Sob esta não reciprocidade esconde-se a ideia de uma transcendência do outro que arranca da aceitação de que é o outro o que mais importa, o que tem toda a prioridade (ética) sobre o mesmo. O valor da não reciprocidade, que significa que o outro e o mesmo não são recíprocos (no exemplo contrário, só há amizade entre recíprocos), dá ao outro um estatuto sem referência de proporcionalidade e de patente assimetria com o mesmo. Entendo que o pensador judeu foi, assim, menos sensível à reciprocidade, que tem de contar-se, pois que introduz a lei, a justiça e o contrato social, nomeadamente influindo no conceito de pessoa enquanto cidadão, que, como tal, vive na sociedade em reciprocidade, na qual os cidadãos são, em verdade, recíprocos, sujeitos ativos e passivos da ordem social onde se integram como indivíduos que têm (ou devem ter) os mesmos direitos e deveres, não sendo um mais do que o outro, segundo uma base democrática e igualitária em direitos e deveres.

Não é necessário introduzir a não reciprocidade para afirmar a imprescritível transcendência da noção e da realidade da pessoa do outro, porque há na pessoa um núcleo de resistência a toda a absorção, a toda a assimilação pela mesmidade do outro, a que a existência social dos recíprocos se opõe. Mas Lévinas não partilha desta socialidade da reciprocidade, e é, então, inevitável observar que, se a não reciprocidade levinasiana evita a lógica imanentista da redução da alteridade à mesmidade do mesmo, no entanto, a sua conceção transporta a ideia de transcendência para um grau tão elevado que ela é já, em verdade, uma abstração, pois que acaba por propor a separação do mesmo e do outro como a circunstância mesma que permite a transcendência, tornando a filosofia levinasiana menos propícia para pensar a sociedade como comunidade de mónadas ou universais recíprocos, cuja transcendência se salva pela noção analógica de pessoa e pela situação transpessoal da comunicação, do diálogo e do convívio intersubjetivo. O nós de Lévinas não vive, em verdade, a torrente caudalosa da reciprocidade universal que, da perceção à conceção, da sensação à ideia, funda a realidade social do conhecimento. O conhecimento é, neste sentido, obra social das mónadas.

O próprio rosto levinasiano padece da abstração do seu conceito de transcendência e é essa abstração que o torna ambíguo. Se o rosto fala, como pretende Lévinas, se é instituidor de discurso, porém, tal é a sua abstração que, em verdade, nada podemos dizer dele ou sobre ele. O rosto é um termo que se refere ao que se não vê numa face e é também o que se refere a uma face, mas esta ambiguidade revela-nos, afinal, que o rosto está sempre além do concreto; não é o concreto de uma face – estes olhos, este nariz, esta pele… – mas é, enfim, todos os rostos. Se o é, é porque todos os rostos se equivalem na nudez como se apresentam, isto é, além da sua designação particular ou do seu ornamento de cultura. No lugar do rosto levinasiano entendo estar a pessoa na sua transalteridade. Não padece da abstração e está suficientemente longe das congruências do concreto e da imanência para se libertar para a universalidade da sua afirmação, e num contexto, naturalmente a sociedade, onde é vital a complementaridade entre os valores da pessoa e da justiça, como, de certo modo, refletiu o jusfilósofo brasileiro Miguel Reale, quem, numa visão de que partilho, defende ser a pessoa o valor fonte, isto é, do saber e do agir.

A pessoa será, não um mero objeto para o pensamento, não a imagem petrificada de um conceito ou do conhecimento, mas o que apela ao meu cuidado. Deve, por conseguinte, ter-se em conta que as pessoas não são meros indivíduos, que têm um corpo, uma psique ou que são seres morais e jurídicos; são pessoas, no sentido em que a pessoa engloba essa individualidade corporal, psíquica, moral e jurídica, mas que é um sempre mais do que isso. A pessoa é sempre uma transcendência: ela transcende o ser corpóreo e psíquico, o ser moral e jurídico, para ser alguém que está ali com rosto, pelo que não é uma simples individualidade, uma abstração, um número ou um elemento de estatística.

À significação mais íntima do movente e do movimento, que é o pensamento e o ato de pensar, ligo o cuidado e o ato de cuidar em primeira aceção. E nesse sentido se dirá que o pensamento que pensa o ser cuida do ser, que quem pensa o mundo cuida do mundo, isto é, elevam-nos ao seu estado de preocupação; igualmente diremos o mesmo para o cuidado que se dirige a uma alteridade: o outro luz no meu cuidado e pensá-lo outrem é revelá-lo verdadeira transcendência relativamente a mim; ora, só por tal cuidar, que pesa o outro como outro e ao pesá-lo pensa-o, é que o outro não se diminui ao rasto dos meus egoísmos, colocando-se muito além do apoucado mundo do meu ego. Ele declara-se uma transcendência pelo cuidado. Eis como o cuidar de outrem me abre à transcendência de outro como outro.

O outro pelo cuidado revela-se uma alteridade absoluta e radical, isto é, uma transalteridade, ou uma alteridade que está ali para o meu cuidado. Este cuidado pelo outro é, no limite, amor ao outro e responsabilidade pelo outro, quer dizer, é cuidado amoroso. De facto, o amor é a expressão teórica, prática e afetiva maior do cuidado que pesa e pensa o outro e o tem como excesso sobre o mesmo. E este outro, quem é? É o ser concreto, de corpo e alma, que ama e que sofre, que se entristece e que se alegra, que está aberto à esperança, mas que pode tombar no desespero; é um ser para o sofrimento e a angústia, tanto quanto é para a doença e a saúde, para a tristeza e para a alegria; é um ser da vida, dado também à inevitabilidade da morte.

O outro arrasta consigo um rosário de transcendências que tem de inapagável a imagem que nele há de mim, como se eu fosse, de certo modo, ou me descobrisse, transcendência inscrita na transcendência do outro. Esta transcendência do outro, no seu enigma de decifração do outro enquanto outro, é já o pressentimento de um outro enigma, o enigma da decifração ontológica da transcendência do ser, enigma que se queda insolúvel na consciência e se propõe como porta entreaberta sobre o mistério da transcendência do ser, que, no limite, é o mistério divino.

Se o termo transcendência designa a forma de uma relação da subjetividade humana situada no mundo com uma realidade da qual ela se distingue ou que está para além (trans-) da realidade que lhe é prontamente acessível, a relação de transcendência resulta do excesso ontológico pelo qual o ser humano se sobrepõe ao mundo e ao tempo histórico e avança além do ser-no-mundo, do ser-com-o-outro e da sua biografia acontecimental para a busca, ou questa, do fundamento último para o eu sou primordial que o constitui e do termo último ao qual referir o dinamismo dessa afirmação originária. Aqui está a razão por que o outro não é só importante para a descoberta da minha alteridade: entra na constituição íntima do meu eu como a única resposta para o enigma da minha própria transcendência como outro.

A experiência da transcendência enquanto é uma experiência vital só se dá no reconhecimento da alteridade, seja a alteridade do mundo, da linguagem, da sociedade ou simplesmente do outro como eu ou de Deus. Essa experiência vital é sempre um experiência do excesso ontológico; se não o for, é porque a relação de alteridade não é verdadeira ou está alcançada ou sufocada pelas valências da imanência ou da redução do alter ao âmbito do mesmo, que é a esfera tanto do ego quanto do egoísmo, tanto da violência como da guerra, tanto do mal quanto das minguadas realidades do egocentrismo.

O termo «transcendência», formado a partir do verbo «transcender» (transcendere: trans-ascendere), significa literalmente «subir além de…». Portanto, segundo o teor literal do termo, a aceção filosófica de «transcendência» diz respeito à metáfora da subida ou ascensão que, desde Platão, ocupa um lugar ilustre no repertório metafórico da linguagem filosófica. Nesta primeira e elementar aceção, o conceito de «transcendência» opõe-se ao de «imanência» como o «além» transmundano se opõe ao «aquém» mundano. O imanente designaria, nesse caso, o âmbito do mundo como horizonte englobante das experiências imediatas do homem, ao passo que o transcendente se referiria às realidades supostamente existentes para além das fronteiras do mundo e postuladas como causa, fundamento ou modelo ideal das realidades mundanas. Mas existe um outro conceito de transcendente que está em marcar o território de excesso da alteridade de um por relação a outro, no quadro mesmo das relações mundanas e intramundanas, quando digo que o objeto transcende o sujeito ou o sujeito transcende o objeto, ou digo que o mundo transcende o sujeito, ou que a linguagem o transcende, etc., querendo com isso significar que não há redutibilidade de um polo ao outro polo e que a relação de polo a polo é constitutiva da própria relação de transcendência.

Existem três grandes formas de experiência de transcendência: a experiência da verdade dada em termos de conhecimento; a experiência ética do bem; e a experiência do absoluto:

  1. A experiência da verdade situa-se no âmbito do conhecimento ou da relação do pensamento com a realidade. Constitui uma experiência diversamente expressa, desde a ideia de que o pensamento se adequa à realidade ou vice-versa, estando a verdade dada nessa adequação, até à verdade como conhecimento do ser, podendo esta verdade ser a coincidência absoluta do sujeito que conhece com o objeto conhecido, ao ponto de a verdade se identificar logicamente com o ser, ou podendo, em contrapartida, ser a verdade como o que se distingue e simultaneamente se oculta, segundo a conceção de que o ser não se revela plenamente e de uma forma absolutamente lógica;
  2. a experiência ética do bem situa o tema da verdade no contexto da ética, pensando o bem como verdade e levando ao agir humano a ideia de que tal agir deverá proceder no sentido da coincidência do ser com o dever-ser. Agir bem é agir de acordo com a reta razão ou estar de acordo com os valores éticos que prescrevem que a mentira, o ludíbrio, o engano, etc., não são princípios valiosos. Além disso, a experiência ética do bem supõe como contrário correlato a experiência do mal. O mal aqui tem a sua origem na ação humana e no egoísmo da pessoa, ressaltando-se a dor, o sofrimento e a morte com origem na fragilidade ôntica e finitude do ser humano;
  3. a experiência do absoluto é a experiência da nossa finitude na relação com a transcendência absoluta de que falam, sobretudo, as religiões, nomeadamente as proféticas, ou a teologia quando se refere ao firmamento.


Nestas três experiências, a verdade, o bem e o absoluto exprimem zonas densas de transcendência por relação ao ser humano, que nelas faz a experiência do excesso ontológico da alteridade.

Sempre o enigma da transcendência está ligado ao sentido da vida e da existência. Mais do que em outra época no Ocidente, o problema do sentido põe-se na nossa com acuidade acrescida. O progresso técnico e científico que se deu entre o século XIX e o século XXI foi acompanhado por um vasto movimento de secularização que quebrou a unidade entre o sagrado e o profano, entre os modos de crença e a vivência social, que alterou também a perceção que o homem tinha do mundo, de si próprio, do outro e, sobretudo, dos seus vínculos com a transcendência, nomeadamente a fé em Deus.

O homem contemporâneo já não vive mais no seio natural de uma vivência religiosa comum, com a sua ordem de valores e a sua doação de sentido à vida humana. O homem dá-se conta de que o mundo moderno da técnica, com todo o seu progresso e bem-estar, não é capaz de emprestar um sentido conveniente. Sente que este mundo, com todas as suas realizações prático-técnicas, no fundo não está dominado pelo homem – que até teme que a técnica o substitua – nem resolve os problemas fundamentais mais humanos, antes ameaça e não consegue responder à questão do ser humano sobre o sentido. A nossa época talvez se caracterize por ser uma época que perdeu o fundamento ou para a qual é mais difícil encontrá-lo além dos deuses caídos e mortos, dos escombros da razão, pelo menos de um certo tipo de razão, e talvez seja por isso que o homem comum busca aquietar-se na opinião, no mundo da doxa, que é também o do consumo, do desperdício e da alienação, ou procura, em contrapartida, experiências metafísico-religiosas que de alguma modo lhe alimentem o sentido de estar aí, e residirá talvez aqui a explicação para o fenómeno da vivência religiosa da crença num absoluto entrevisto por entre a miríade de opções espirituais em oferta. Esta inusitada procura pelo firmamento tem os rasgos de uma tresloucada procura pelo sentido. O homem da doxa, porém, desconhece que o sentido só se dá na relação do fundamento com o firmamento.

Quem não possui nenhuns valores e objetivos válidos, que deem à sua vida sentido e orientação, perde o Oriente, não sabe o para quê e o para onde. Experimenta um vazio interior, um profundo mal-estar, e rebela-se. A atitude das existências que perderam a convicção sobre o sentido da vida pode ser caracterizada segundo o niilismo. O niilismo que considero, que não é aqui o de Nietzsche, que propunha uma transvaloração dos valores e a criação de novos valores, significa uma posição de existência caracterizada pela convicção de que nada tem sentido e geralmente concorre com a ideia de que quaisquer valores, sobretudo os éticos, são relativos, históricos e não absolutos. A atividade do homem niilista pode assumir duas atitudes: uma banal, que identifica o sentido com o nada; uma crítica e reflexiva, geralmente doutrinária, que não identifica o sentido com o nada ou que não aceita que o sentido não possa ser construído; bem pelo contrário, o homem niilista entenderá que a ação do homem é a única fonte e origem do sentido, a nascente da valoração do real, pelo que aprovará a intervenção do homem na realidade e assumirá a ideia de que o homem é um projeto a ser construído. Esta temática do projeto como assunção heroica da ação humana contra o nada e a morte é típica das filosofias existencialistas ateias, como a de Jean-Paul Sartre. O existencialismo ateu distingue-se do existencialismo cristão, como o de Jacques Maritain, onde o sentido e a ordem do sentido, bem como a valoração do real e a construção do ser-no-mundo como projeto, estão integralmente dependentes das relações do humano com a transcendência de Deus.

Em face da ausência de sentido, os sentimentos que acodem à existência humana podem ser de absurdo, de desespero e de angústia. Não há saída para estes sentimentos se a convicção se mantiver quanto à ausência de sentido, seja do mundo, seja da vida, seja da existência. Há quem procure saídas polarizando os seus ideias e valores em torno da pátria, do trabalho, da família, da carreira profissional, etc. No âmbito social, são possíveis muitas opções, mas nenhuma destruirá a convicção de que entre a realidade e o sentido não existe qualquer ponte. A única ponte que existe entre a realidade e o sentido é a ponte da transcendência. A despeito do absurdo, do desespero e da angústia como males do nosso século, ainda e só a crença no ser divino, restaurando a relação humana com a verdadeira transcendência, que só no infinito existe perfeitamente, é que poderá introduzir a esperança, libertando-nos da ideia do ser-no-mundo como um ser para a morte pela ideia do ser-no-mundo como um ser para a esperança.

Independentemente da assunção desta via pela transcendência de Deus, o único combate que pode haver pelo sentido é ainda o combate pela transcendência. Assim, o homem, que perdeu o sentido, só ganha e volta ao sentido se se transcender no seio de valores e ideais: transcende-se na pátria, no trabalho, na família, na carreira profissional, etc., ou pode transcender-se no dinheiro, na dedicação a si, na dedicação aos outros, etc. São formas de transcendência, nem todas elas éticas ou altruístas, mas são formas de transcendência, o que significa que a falência do sentido só acontece quando alguém se recusa à transcendência, sendo isso o equivalente à negação de si como projeto, ao ponto de poder ser o caminho para a convicção absoluta de uma ausência de sentido, tal que equivalha à morte intencionada ou suicídio. O que digo é que não há sentido sem a construção da transcendência. Construir a transcendência é um apelo, oferece-nos um horizonte, mitiga a sede que nós somos.

A mulher ou o homem que está doente de sentido só alcança a cura pela aceitação incondicional da transcendência. O meu ponto de vista, que é fundamentalmente filosófico, que assenta no método de transcendência, aproxima-se, contudo, de certos aspetos de uma psicologia de nervo holístico, que procura entender o ser humano nos múltiplos registos que vão do corpo e da sexualidade à mente e ao espírito, interrogando a fragmentação da unidade interior e procurando a sua coerência pela ideia de que esta só se estabelece pelo encontro da subjetividade com o sentido.

A unidade que é a pessoa tem o seu fundamento no ser mesmo como ser humano e não é uma construção exterior. Ela é um ser vivo unificado, com um centro. Este dado científico, biológico, tem a sua versão existencial no facto de o ser humano ser um eu-mesmo. Uma aproximação a este fenómeno do ser humano como um eu-mesmo está em que pode destacar-se e separar-se de quanto ele não é. Neste processo, que caracterizo como capacidade de o ser humano transcender-se desde a sua simples função de organismo, o ser que é o homem apresenta-se remetendo-se para ele próprio como um eu-mesmo. Este remeter-se é uma experiência radical de unidade e é significada pela palavra «eu» – que não pode ser quebrada, que, a ser, será fonte de neuroses –, eu que, na sua evolução, desde a matriz do eu primordial, necessitará de transcender-se (não será essa a noção existencial mesma de projeto?) e necessitará do outro para compreender a sua própria transcendência.

Como temos visto, a transcendência e a alteridade são conceitos dos mais complexos, porém, complementares, que permeiam a nossa existência e têm influência direta no nosso desenvolvimento pessoal e no relacionamento humano. Convidam-nos geralmente a ir além de nós mesmos e a respeitar a diversidade, a humanidade e a outridade do outro.

A transcendência refere-nos e igualmente refere-se ao ato de superar as limitações da nossa própria experiência e compreensão individuais; chama-nos a explorar e a expandir os nossos horizontes, buscando um significado mais profundo e uma conexão com algo além da imediatidade do nosso eu-mesmo originário. Por isso se compreende que a transcendência possa ocorrer através da contemplação filosófica, da prática de meditação, da imersão na natureza, da religião ou até mesmo por via das atividades artísticas, das artes manuais e plásticas à música e à literatura, que nos transportam para uma outra dimensão de perceção e compreensão.

A alteridade, por seu turno, está relacionada com a capacidade de reconhecer a singularidade do outro, separada da nossa própria perspetiva. É a consciência de que cada ser humano é único, com suas experiências, valores e ideias que podem diferir dos nossos. A alteridade nos convida a abandonar a posição centrada em nós mesmos e a adotar uma abordagem mais empática e respeitosa em relação ao outro.

A relação entre transcendência e alteridade é intrínseca. Este intrinsequismo significa que o ser humano se situa interiormente nessa relação, que pode ser ou não tensiva, que o será sobretudo se permaneço, por exemplo, no meu egoísmo, evitando a saída para o outro, ou se tenho uma falsa conceção de transcendência, quando aceito que o meu eu é o que mais importa no mundo e é, como tal, sobranceiro na relação com outrem. Ao transcendermos a nossa própria experiência individual, ao trocar o eixo do egoísmo pelo do altruísmo, somos capazes de abrir espaço para a alteridade, permitindo que a perspetiva do outro floresça e seja valorizada. A transcendência nos liberta dos nossos preconceitos e limitações pessoais, despertando a empatia e a compreensão em relação ao outro. Assim é que, quando buscamos a transcendência e a alteridade, somos desafiados a refletir sobre as nossas próprias crenças e valores, questionando-os e ampliando os nossos horizontes mentais e espirituais. Abrimos espaço para a inclusão e a aceitação das diferenças, reconhecendo que o outro também possui a sua própria complexidade e individualidade.

A transcendência e a alteridade têm implicações significativas não apenas nas nossas vidas individuais, mas também na construção de sociedades mais justas e inclusivas. Quando transcendemos as nossas visões restritas e abraçamos a alteridade, somos capazes de construir pontes entre culturas, religiões, raças e nacionalidades diferentes. Ao reconhecermos o outro como um ser único e valioso, como valor fonte, trazemos à tona a importância do diálogo, da tolerância e da cooperação mútua.

É importante destacar que o processo pelo qual procuramos alcançar a transcendência e a alteridade não é tarefa fácil. Requer autorreflexão constante, serenidade e disposição para desafiar as nossas próprias crenças arraigadas e expectativas. É um caminho que envolve a prática da humildade e da empatia, e muitas vezes exige coragem para enfrentar desconfortos e incertezas.

Portanto, buscar a transcendência e a alteridade é uma jornada individual e coletiva de autodescoberta, compaixão e crescimento, para cuja execução devemos convidar o sistema educativo – sublinhe-se a sua responsabilidade –, e desde o compromisso com a mais tenra idade. É um convite para transcender as barreiras de nossos próprios limites e abraçar a riqueza da diversidade humana. Nessas práticas de transcensão do nosso mundo encontramos não apenas a nossa verdadeira essência como seres humanos, mas também a capacidade de criar um mundo mais inclusivo e harmonioso, já que transcendência e alteridade são conceitos que se referem à capacidade de o ser humano ir além de si mesmo e se relacionar com o outro.

A transcendência, para a qual há também uma consciência pragmática, refere-se sempre à capacidade de olhar para além das questões imediatas e individuais e de buscar um sentido ou propósito maior na vida. É a capacidade de transcender as limitações do ego e do egoísmo, buscando uma conexão com algo maior (seja ele Deus, seja um princípio, seja a própria humanidade). A transcendência é o que nos permite encontrar significado e sentido para a nossa existência, levando-nos a olhar para além de nossas próprias necessidades e desejos.

Congruentemente, a alteridade, que se refere à capacidade de reconhecer o outro como um ser distinto e igualmente importante, é a capacidade de se colocar no lugar do outro, reconhecendo as suas necessidades, desejos e perspetivas. A alteridade convida-nos a quebrar as barreiras do egoísmo e do egocentrismo para nos levar a buscar o bem comum e a promover a justiça e a solidariedade, práticas reais da sociedade, da política e do Estado, contribuindo para a construção de uma comunidade mais justa e solidária, sendo este o desiderato da verdadeira democracia de que as mónadas, infinitas transalteridades, são o centro e a periferia.

Desde o início do século XXI, mais precisamente desde 2001, que tenho vindo a desenvolver a noção de razão comovida. Pertencem à sua estrutura conceitual a transcendência e a alteridade. É assim que a transcendência, a alteridade e a razão comovida são conceitos complexos e interligados que entendo terem, na minha perceção, um papel fundamental no processo de compreensão e evolução humana.

A transcendência, como tivemos a oportunidade de ver, é a capacidade de o ser humano ir além de si mesmo, de elevar-se para lá dos limites do seu ego e unir-se por transcensão de si com algo maior. Se quisermos, é a busca pelo significado último e pela ligação última com o divino. É o reconhecimento de que somos mais do que apenas corpos materiais e que existe algo maior e mais profundo do que as nossas limitações físicas, mentais e temporais.

A alteridade, por sua vez, é a capacidade de reconhecer e respeitar o outro como um ser humano único e diferente de nós mesmos. É a compreensão de que cada indivíduo tem suas experiências, perspetivas e necessidades próprias, e que é necessário valorizar e respeitar essas diferenças. É o reconhecimento da igualdade e da dignidade intrínseca de cada ser humano, independentemente de raça, género, religião ou qualquer outra característica.

A razão comovida, por fim, é o uso da razão de forma integrada com as comoções[1]. É a capacidade de compreender e de se sensibilizar com as experiências e os sentimentos dos outros. É o entendimento de que a razão não deve ser dissociada das comoções, mas sim envolvida numa compreensão com elas, de forma a nos capacitar para uma intelecção mais profunda e empática do mundo e das pessoas ao nosso redor, que nos permite transcender a lógica fria e mecânica e nos sensibilizar com o sofrimento e a felicidade dos outros.

Deste modo, a razão comovida é um antídoto para a indiferença, a insensibilidade e o egotismo. É uma forma de racionalidade que pretende acercar-se de uma visão mais profunda e genuína do mundo e dos seres humanos. Ao integrar a razão com as comoções, propõe-nos um agir de forma mais ética, solidária e humana. No prumo que permite a relação angular do fundamento com o firmamento entende encontrar o nexo profundo entre o ser e o dever-ser, não achando na verdade do conhecimento senão uma forma simbólica do bem, sendo que a verdade e o bem são vias de acesso a que o pensamento se destina, para a transcendência do infinito.

Consideremos mais de perto a realidade teórica e prática da razão comovida. Como conceito filosófico, pode ser entendido como a união entre a racionalidade e a comoção, uma forma de pensar e agir que busca equilibrar a lógica e a sensibilidade. Ora, tradicionalmente, a razão e a afetividade têm sido vistas como opostas e até mesmo conflituantes. A razão é considerada a capacidade de pensar de maneira lógica e sistemática, baseada em factos e análises objetivas. Por outro lado, a comoção é associada ao mundo subjetivo das sensações e sentimentos, muitas vezes considerada irracional e instável. A razão comovida questiona esta dicotomia, propondo que a racionalidade não deve ser separada da comoção, mas sim integrada com ela, sem deixar a razão de ser razão e de ser a razão sempre a melhor perspetiva sobre o mundo. Afinal, somos seres racionais e emocionais simultaneamente, e não é razoável ignorar a dimensão emocional da nossa existência.

Um dos filósofos cuja visão do mundo contribuiu para a ideia de que não estou sozinho no mundo filosófico ao pensar uma nova forma de racionalidade foi Pascal, que com felicidade soube argumentar que o ser humano é movido tanto pela razão como pela paixão, e que ambas são igualmente capitais para a complexidão da nossa natureza humana. Donde a razão não poder ser puramente objetiva, mas também influenciada pela subjetividade emocional, não havendo propriamente razão pura mas impura, não sendo a primeira mais do que uma abstração da segunda. Acresce dizer que na filosofia portuguesa, e sem muitas reais exceções, encontrei uma experiência hermenêutica do pensamento racional feita a par e passo com o envolvimento da afetividade, onde aparece como crucial a efusão lírica da razão a pensar o ser, que entende que a habilidade de sentir e expressar emoções é uma parte essencial da nossa existência. É assim que a razão comovida contrai a sua dívida para com o pensamento português, nele reconhecendo parte substancial da sua filiação.

A razão comovida entende que a negação da afetividade, como se fez no cartesianismo, leva a um empobrecimento da experiência humana, pelo que acredito que a razão comovida é capaz de alcançar uma compreensão mais ampla e profunda da realidade ao integrar a racionalidade com a sensibilidade emocional, de certo modo se aproximando das teorias da inteligência emocional pela atenção que dá à emergência das componentes comocionais da vida como resposta ao mundo e aos outros.

Além disso, a razão comovida também se relaciona diretamente com a ética e a moralidade. Ao considerar a emoção como um fator importante na tomada de decisões e no estabelecimento de princípios éticos, entende que o ser humano é capaz de desenvolver uma ética mais humana e compassiva. Neste contexto, a razão comovida leva-nos a reconhecer a importância do sofrimento do outro, a sua inevitável fragilidade ou tragicidade congénita e indica ao ser humano a necessidade de formas responsáveis e solidárias de agir.

É importante ressaltar que a razão comovida não prega o abandono da racionalidade em favor das emoções desenfreadas. Pelo contrário, busca uma harmonia entre razão e comoção, um equilíbrio saudável que nos permite tomar decisões fundamentadas e agir com empatia e compaixão. É um convite para que não neguemos a nossa afetividade, mas que a integremos de maneira consciente e responsável tanto no pensamento como na ação.

Em suma, ao reconhecer a importância das comoções na vida humana e no processo de tomada de decisões, a razão comovida reflete no sentido da ordem transcendente das realidades, isto é, de que somos capazes de uma compreensão mais profunda e significativa do mundo desde o seu fundamento ontológico, bem como de uma ética mais compassiva, levando em consideração, na teoria e na prática, tanto a lógica racional quanto as sensações emocionais.

Casa da Calçada, 25.10.2023


[1] Do latim commotione, que significa «ato de agitar», «sacudidela» e que vale, figurativamente, por emoção, a palavra «comoção» significa, no contexto, o universo da afetividade, o mar oceânico das afeções, das paixões, das emoções, da sensibilidade e do sentimento que sacode ou agita a razão, desassossegando-a, levando-a ao movimento. A razão co-move-se e move-se. A associação entre ratio e pathos aceita que tudo é pensamento, da volição e do sentir à inteligência, segundo a ideia de que há uma indisfarçável penetração da afetividade no tecido do pensamento, cuja negação constitui a disjunção dos termos e a sua fatal abstração.

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