Revista ENFIC

Revista do Encontro Nacional
e Internacional de Filosofia Clínica

Babelismo e barbaria: o fator linguístico na apreensão do outro

BABELISMO E BARBARIA: O FATOR LINGUÍSTICO NA APREENSÃO DO OUTRO
Cyril Aslanov
Aix-Marseille Université/CNRS (UMR 7309)
The Academy of the Hebrew Language, Jerusalem

1. Babel sem babelismo: a comunicação interlinguística no mundo da Bíblia

O famoso episódio do Gênesis 11:1-9 interpreta a diversidade linguística dos povos da terra como o castigo do pecado de orgulho cometido por uma humanidade inicialmente indivisa do ponto de vista linguístico. O capítulo precedente (Gênesis 10) cataloga os descendentes de Sem, Cam e Jafé e menciona já a diferença linguística usando a fórmula recorrente “segundo a sua língua” (li-ləšonō/li-ləšonotām)  (Gênesis 10:5; 20; 31) de modo que o relato da divisão das línguas aparece como um parêntesis incidental entre as genealogias dos filhos de Noé e a linhagem desde Sem até Abrão (Gênesis 11: 10-32). O verdadeiro castigo dos construtores da “cidade e torre” (‘īr ū-migdāl) foi mais a dispersão, longe da cidade que tinham construído, do que a divisão das línguas, que foi apenas o corolário da dispersão geográfica e demográfica dos primeiros citadinos da história humana. A conclusão desse episódio etiológico, que condena a urbanização como a antítese negativa do nomadismo considerado como um polo axiológico positivo, é o jogo de palavras entre o nome de Babilônia (Bābel) e o verbo bālal “confundir”, “por isso se chamou o seu nome Babel, porquanto ali confundiu (bālal) o Senhor a língua de toda a terra” (Bíblia ACF) (Gênesis 11:9).

No entanto, a paronomásia etiológica que procura deduzir de uma similaridade fortuita entre os significantes um vínculo essencial entre duas coisas sem relação nenhuma, não corresponde à verdadeira etimologia do nome Bābel. Esse topônimo hebraico é a reinterpretação tendenciosa do nome acádio Bāb-ili(m) cujo significado de “Porta de Deus” poderia ser à sua vez uma etimologia popular derivada do acádio (Bodi, 2014: 87-88).

Então a conotação negativa do nome Babel e do seu derivado babelismo, que se refere à coexistência caótica de muitas línguas, parece ser o resultado de uma interpretação secundária. A intenção original dos capítulos 10-11 do Gênesis era de justificar a diversidade linguística (Gênesis 10) mediante um mito etiológico (Gênesis 11:1-9) no qual o monolinguismo inicial da humanidade indivisa foi uma das causas do pecado de hybris. Porém nesse relato não é mencionada a natureza da língua original da humanidade indivisa. A ideia que poderia ser o hebraico – a língua da criação e a língua adâmica – deriva de uma tradição exegética sem verdadeira raiz na letra do texto.

Mais adiante, na narrativa bíblica, a referência à diversidade linguística aparece algumas vezes. Porém não atrapalha verdadeiramente a comunicação linguística. Assim, em Gênesis 31:47, o Arameu Labão chama o monte erigido para significar a paz com Jacó com o nome aramaico Yəgar śāhadūtā “monte do testemunho” enquanto Jacó o chama com o nome hebraico de Gal‘ēd. Parece que a escolha das duas línguas é o resultado duma preferência pessoal mais que da incapacidade de usar a outra língua ou a língua do Outro.

Inclusive quando a comunicação é mediada por um intérprete (mēlī) como em Gênesis 42:23, o papel deste mēlīé totalmente supérfluo dado que José, fingindo não ser hebreu, entendia perfeitamente a língua dos seus irmãos chegados no Egito. O mundo tal como foi representado na Bíblia não conhece problemas de comunicação linguística, talvez porque no antigo Oriente Médio houve línguas veiculares como o acádio no II milênio a.C. ou o aramaico no I milênio a.C. que garantiam a compreensão entre os vários povos da região (Aslanov, 2011 : 32).

2. A perspectiva etnocentrista dos Gregos na antiguidade: helenismo e barbaria

Embora a história grega antiga fosse marcada pelo plurilinguismo e pelo contato da língua grega com outras línguas, os gregos traçaram uma fronteira muito clara entre o helenismo caraterizado pelo pertencimento a uma comunidade linguística helenófona e a barbaria que correspondia a todos os povos que não falavam grego. Isso não quer dizer que os Gregos desprezavam a outreidade estigmatizada pelo uso de uma língua incompreensível. Algumas nações bárbaras eram tão respeitadas que a sua barbaria era quase esquecida. Isso foi o caso dos egípcios, reputados por ser os maestros da humanidade, dos fenícios conhecidos por ser navegadores e comerciantes sem comparação, dos povos da Ásia Menor considerados como muito refinados ou dos persas cujo império fez tremer os Gregos até a sua destruição por Alexandre Magno, ele mesmo sendo um Macedônio helenizado mais que um verdadeiro Grego. No entanto, os gregos não faziam nenhum esforço para apreender as línguas daquelas culturas estrangeiras e valiam-se de intermediários para entendê-las minimamente. Assim, por exemplo, as Histórias de Heródoto revelam uma incompreensão da dimensão linguística como se vê nas etimologias erradas que ele propõe amiúde para procurar entender os termos das línguas bárbaras que ele encontrou durante as suas viagens. Contudo, Heródoto, nascido na cidade de Halicarnasso na Cária tinha origens cárias e entendia provavelmente a língua cária. Na realidade, o Pai da história mantinha uma relação complexa com o Outro bárbaro como se vê nos casos em que ele relativiza a distinção entre Gregos e Bárbaros. Assim, a propósito dos citas, considerados como o paroxismo da barbaria, ele distinguiu entre os calípides – citas helenizados (Ἕλληνές Σκύθαι, literalmente “Citas gregos”) (Heródoto, Histórias, IV 17) – e os citas mais claramente bárbaros. Porém, no mesmo catálogo das nações citas, Heródoto menciona os gelonos (108), povo muito isolado nas selvas do norte da Cítia. Segundo Heródoto, aqueles gelonos seriam de origem grega e a sua língua consistiria numa mistura de grego e de cita (Aslanov, 2022-2023: 135).

3. A confrontação com o babelismo ou com a barbaria: dois tipos de universalismo

A aceitação do babelismo no mundo da Bíblia contrasta com a recusa grega da barbaria linguística. Essa diferença essencial na relação com a Outreidade linguística pode ser devida à consciência dos Hebreus da época bíblica e dos Judeus da época pós-bíblica de constituir um povo pequeno apesar da dimensão universal implicada na sua vocação monoteísta. Emaranhado  entre os grandes impérios do Oriente Médio ou do Mundo mediterrâneo o povo de Israel não podia dar-se ao luxo de um monolinguismo arrogante. Os Hebreus e os Judeus tiveram que conhecer as línguas das nações vizinhas. O versículo do Deuteronômio 32:8 (“Quando o Altíssimo distribuía as heranças às nações, quando dividia os filhos de Adão uns dos outros, estabeleceu os termos dos povos, conforme o número dos filhos de Israel”) estabelece uma equação entre o número dos descendentes de Noé (veja Gênesis 10 mencionado acima) e o número 70 que corresponde à quantidade dos Israelitas descidos com Jacó ao Egito (Êxodo 1:5). Obviamente há muito mais que 70 línguas na humanidade, mas na percepção hebraica do mundo esse número simbólico (7 o número perfeito multiplicado por 10, número da totalidade) representa um modo para canalizar uma abundância inumerável.

E foi precisamente no momento do encontro fatídico entre o judaísmo e o helenismo que os judeus adotaram explicitamente a perspectiva do babelismo para responder à pretensão monolíngue dos gregos. Uma tradição do judaísmo helenístico, mencionada na Carta de Aristeias (§ 46) e no Talmude babilônico ou da Babilônia  (Megillah 9a), conta que 72 foram os sábios judeus que traduziram o Pentateuco por ordem do rei Ptolomeu Filadelfo, por volta de 270 a.C.. Esse número de 72 é um modo de racionalizar o número 70 através da ficção da escolha de 6 sábios por cada tribo (embora naquele tempo já não houvesse tribos em Israel). Seja como for, a tradução alexandrina da Bíblia é conhecida em grego sob o nome de ἡ μετάφρασις τῶν ἑβδομήκοντα – “a Versão dos Setenta” (Septuaginta em latim) – como se o número 72 tivesse que ser harmonizado com a antiga tradição judaica, segundo a qual as línguas da humanidade seriam 70. Essa tradição quanto às 70 línguas da humanidade reaparece num lugar do Talmude da Babilônia (Menaḥot 65a) que estipula que os membros do Sinédrio (Sanhedrin) tinham que conhecer as 70 línguas da humanidade. Sendo que o Sinédrio era composto de 71 membros, supõe-se que o requisito de conhecer as 70 línguas da humanidade cabia em modo coletivo ao conjunto dos 71 membros daquela assembleia. Um eco da tolerância judaica com respeito ao babelismo encontra-se no episódio de Pentecostes quando os apóstolos começaram a falar nas línguas de todos os judeus diaspóricos chegados a Jerusalém para festa das Semanas (Pentecostes) (Atos dos Apóstolos 2 :4-12).

À diferença dos Judeus, os Gregos não podiam articular a universalidade com o babelismo. Para eles a adoção da língua grega pelos bárbaros era o pré-requisito indispensável para poder dialogar com a Outreidade. Assim se explicaria a empresa da tradução da Bíblia em grego mencionada acima embora, segundo outras opiniões, a tradução da Lei de Moisés para o grego teria sido uma iniciativa da comunidade judaica de Alexandria, que era incapaz de entender a letra hebraica do texto original (por ter se tornado grega demais, quer dizer, incapaz de entender o que não fosse grego). Na mesma época e na mesma cidade, o sacerdote egípcio Maneton escreveu  em grego uma história monumental do Egito intitulada Aegyptiaca enquanto no Império Selêucida, um contemporâneo de Maneton, o sacerdote babilônico Berossus, escreveu em grego as Babyloniaca que narra a mitologia babilônica para um público de língua grega. Outras civilizações que os Gregos consideravam como linguisticamente bárbaras, apesar do alto nível cultural delas (Momigliano, 1991), produziram textos em grego para dar ao mundo helenístico a possibilidade de conhecê-las: a suposta tradução do texto fenício de Sanconíaton ao grego por Filo de Biblos no I século da Era Comum; a longa tradição historiográfica romana em língua grega: Políbio; Diodoro Sículo; Dionísio de Halicarnasso; Plutarco; Dion Cássio. Esse modo de apreender a diversidade cultural através de traduções do grego é uma modalidade da interpretatio graeca, filtro helenizado que permitia reconhecer na cultura grega um equivalente das entidades culturais dos outros povos: assim o deus romano Júpiter e sua esposa corregente do Olimpo, Juno, foram identificados com Zeus e Hera, o casal supremo do Panteão helênico, e a equação obtida assim era considerada como equivalente ao casal divino Ba‘al/Tanit da religião fenícia. A redução ao mesmo tempo ajudava a decifrar tanto a realidade humana quanto a divina com um olhar imperturbavelmente helênico segundo uma atitude que considerava que tudo — as línguas como as realidades — podia ser traduzido em língua grega e segundo as categorias helênicas, desde que se mantivesse uma distinção fundamental entre os gregos autênticos e os bárbaros helenizados capazes de participar da mesma civilização, submeter-se às mesmas categorias, à mesma língua.

4. A posteridade das atitudes dos Judeus e dos Gregos no mundo moderno

Os dois paradigmas descritos acima tiveram repercussões a longo prazo no desenvolvimento ulterior da cultura judaica e da civilização grega. A famosa afirmação do apóstolo Paulo na Epístola aos Gálatas 3:28 (“não há judeu nem grego”) refletia a vontade daquele judeu helenizado de superar o exclusivismo dos judeus, tolerantes com respeito à diversidade linguística mas religiosamente intransigentes, e a atitude diametralmente oposta dos gregos, abertos às religiões dos seus vizinhos mas impermeáveis às línguas que não fossem o grego. No entanto, Paulo não conseguiu abolir as barreiras nem entre os judeus e os gentios nem entre os gregos e os bárbaros. O judaísmo seguiu o seu caminho, combinando como tinha sempre feito, a abertura às línguas dos outros com a fidelidade à fé ancestral. Inclusive dentro do cristianismo, a opção do cristianismo judaico sobreviveu até o século IV da Era Comum, se devemos considerar as seitas dos nazarenos e dos ebionitas como a continuação das correntes judaicas ou judaizantes dentro do cristianismo primitivo (Pritz, 1988). Enquanto a segunda parte da pretensão de Paulo de abolir as fronteiras entre judeus e gentios e entre gregos e bárbaros, foi também uma ilusão. Após o reino de Teodósio I (378-395) que tinha proibido todas as formas de paganismo no Império Romano, o helenismo e a cristandade que eram substancialmente solidários, desde a origem da nova religião, tornaram-se ainda mais vinculados apesar da emergência de cristandades locais fora do ambiente helênico: no Ocidente com a afirmação da Igreja Romana; no Oriente com a proliferação de obediências religiosas separadas da Ortodoxia grega pelas questões doutrinais e pelo particularismo linguístico: Igreja Armênia; Copta; Abissínia; Siríaca. Aquela proliferação de igrejas independentes que praticavam a própria língua foi a resposta de uma ecumene não totalmente helenizada à pretensão da civilização grega cristianizada de representar exclusivamente o espírito da religião cristã.

Bibliografia

ASLANOV Cyril. 2011. Sociolingüística histórica de las lenguas judías, Buenos Aires, Lilmod.

ASLANOV Cyril. 2022-2023. “La rive septentrionale de la mer Noire et son arrière-pays comme Terra incognita : la ‘scythographie’ entre historiographie et mythographie d’Hérodote à Constantin Porphyrogénète,” Transponticae: Revue et collection d’études littéraire et culturelle sur la mer Noire / Journal and book series for Black Sea literary and cultural studies, no 1 (2022-2023): 131-149.

BODI Daniel. 2014. “Quelques noms et mythes de Babylone et leurs échos dans la Bible Hébraïque,” in: Katia ZAKHARIA (ed.), Babylone, Grenade, villes mythiques: récits, réalités, représentations, Lyon, Maison de l’Orient et de la Méditerranée, pp. 85-98.

MOMIGLIANO Arnaldo. 1991. Os Limites da Helenização: A Interação Cultural das   Civilizações Grega, Romana, Céltica, Judaica e Persa, trad. Cláudia Martinelli Gama, Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

PRITZ Ray A. 1988. Nazarene Jewish Christianity: From the End of the New Testament Period Until Its Disappearance in the Fourth Century, Leida, E.J.Brill/Jerusalém, The Magnes Press.

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