HOMOGLOSSIA E HETEROGLOSSIA EM SITUAÇÕES DE BELIGERÂNCIA: DA GUERRA DE TRÓIA ATÉ O CONFLITO NA UCRÂNIA
Cyril Aslanov
Aix-Marseille Université/CNRS (UMR 7309)
The Academy of the Hebrew Language, Jerusalem
1. Homoglossia e beligerância ou como matar-se uns aos outros na mesma língua
A história comprida das guerras que ensanguentaram a humanidade revela que o fato de falar a mesma língua nunca foi um obstáculo à exacerbação da violência fratricida. O relato da famosa guerra de Troia na Ilíada não faz referência nenhuma a qualquer dificuldade de comunicação linguística entre os agressores aqueus e os troianos sitiados. Isso não quer dizer que uns e outros falavam a mesma língua: talvez a facilidade da comunicação entre as duas nações inimigas seja o resultado duma convenção literária. Aliás, se queremos levar a sério o texto homérico e considerar que ele reflete uma situação histórica autêntica, pode-se supor que os Aqueus e os Troianos usavam uma língua veicular, a não ser que os Troianos fossem bilingues e que conhecessem o grego além da própria língua, que era provavelmente o luvita (Watkins, 1986). Assim se explicaria o caráter heteróclito do onomástico troiano: ao lado de nomes autenticamente anatólios como Príamo (< luvita Priimuua) ou Páris (< luvita Pari-zitis) muitos Troianos têm nomes absolutamente gregos: Andrômaca, Heitor, Cassandra, Astíanax ou Alexandros, o segundo nome do Páris (Alaksandus em hitita) que fica atestado nas fontes hititas em referência a um rei de T(a)ruišaš/Wilušaš, nomes anatólios de Troia que correspondem aos nomes helenizados Τροία/Ϝίλιον (Ἴλιον). Aparentemente a destruição de Troia (atestada através da camada Troia VII do sítio arqueológico de Hisarlık) aconteceu num contexto em que os beligerantes se entendiam perfeitamente ao nível linguístico.
Este paradigma da guerra impiedosa apesar da possibilidade de comunicar na mesma língua encontra-se em todas as situações de guerras civis ou de guerras entre irmãos inimigos (como na guerra atual entre Rússia e Ucrânia onde a língua russa é bem conhecida dos Ucranianos). Aquelas situações históricas em que o conhecimento da língua do inimigo agrava a situação de beligerância em vez de atenuá-la podem justificar o ceticismo com respeito ao projeto de Ludwik Zamenhof de criar o esperanto como panaceia à agressividade entre as nações do mundo. No mês de agosto 2023 achei no diário francês Le Monde uma publicidade a favor do esperanto como se os recentes acontecimentos da guerra na Ucrânia e da exacerbação das tensões na fronteira oriental da OTAN, a poucos quilômetros da cidade polonesa de Białystok onde nasceu Zamenhof, tivessem reativado a fé ingênua na possibilidade de neutralizar os ódios nacionalistas mediante a adoção duma língua única.
O fato de pertencer a uma mesma comunidade linguística evidencia ainda mais claramente a absurdidade das guerras porque a discórdia cria uma situação em que as palavras da língua cessam de ter o mesmo significado pelos beligerantes. Tucídides analisou em modo muito penetrante as derivas semânticas consecutivas à situação de guerra civil em Atenas no período da guerra do Peloponeso compreendido entre 428 e 425 a.C. (História da Guerra do Peloponeso, 3. 82, 3-4) (Aslanov, 2023: 13-15) e a capacidade de entender a mesma palavra ou a mesma frase num modo diametralmente oposto segundo o pertencimento a uma ou outra das facções políticas.
2. A guerra, geradora de cisões linguísticas
O fato de falar a mesma língua jamais garantiu a paz entre nações antagonistas ou facções rivais dentro duma mesma nação. Aliás, aconteceu várias vezes ao longo da história que uma situação de beligerância não só gerou os discursos contraditórios mencionados acima, mas também acelerou um processo de cissiparidade de línguas diversas. Isso foi o caso no momento da partição do Raj britânico entre a Índia e o Paquistão. A língua hindustâni falada no Norte do Subcontinente indiano antes da independência dividiu-se em duas línguas: na Índia impôs-se o hindi, marcado por um processo de supressão dos vocábulos de origem persa e substituição destes por elementos do sânscrito, enquanto no Paquistão o urdu manteve um importante contingente de palavras de origem persa.
Um fenômeno similar aconteceu após o desmantelamento da Iugoslávia quando o servo-croata, língua comum dos sérvios e dos croatas, cindiu-se em quatro línguas: o sérvio, o croata, o bósnio e o montenegrino (BCMS em abreviação). Embora haja diferenças dialetais na língua servo-croata entre os dialetos štokavianos, čajkavianos e kajkavianos (chamados assim pela forma distinta do pronome interrogativo que? naqueles dialetos), essas particularidades não correspondem exatamente às clivagens étnico-religiosas entre os sérvios ortodoxos, os croatas católicos, os bósnios muçulmanos e os montenegrinos majoritariamente ortodoxos. Na verdade, os dialetos čajkavianos e kajkavianos eram tradicionalmente associados a regiões da Croácia, sendo, porém, os dialetos štokavianos comuns à Sérvia, à Bósnia, a Montenegro e, inclusive, a uma parte da Croácia (Eslavônia), transcendem as diferenças religiosas e étnicas entre os sérvios, uma parte dos croatas, os bósnios e os montegrinos. Nem a diferença entre o uso do alfabeto latim (para escrever o croata e o bósnio) e do alfabeto cirílico (para escrever o sérvio e o montenegrino) é dirimente porque até o sérvio e o montenegrino, tradicionalmente escritos em letras cirílicas, escrevem-se amiúde com letras latinas. Hoje em dia, a guerra na ex-Iugoslávia está resolvida apesar da orientação pro-putiniana da liderança sérvia. Por isso aquelas divisões artificiais dentro do conjunto convencionalmente chamado com o nome tecnocrático de BCMS parecem fora de propósito, especialmente se um dia a Sérvia, a Bósnia e o Montenegro juntarem-se à União Europeia, como já fez a Croácia.
Aqueles processos de glotogênese artificial refletem a vontade de fabricar uma identidade linguística artificial para exprimir uma diferença desejada ou fantasiada com respeito a um Outro que originariamente não fala uma língua diversa. Na terminologia sociolinguística a exageração da diferença linguística denomina-se com o termo alemão de Sprachaufstand “insurreição linguística”. Normalmente, esta atitude consiste em promover uma língua minoritária ou um dialeto discriminado. No entanto, nos casos descritos acima (criação artificial do hindi e do urdu a partir do hindustâni e do BCMS a partir do servo-croata) o Sprachaufstand é mais radical dado que consiste na criação duma língua a partir duma outra língua para manifestar uma diferença com respeito a comunidade linguística associada à língua-matriz.
3. A marca insuperável da diferença na língua: shibboleth e outros índices comprometedores
A beligerância num contexto da homoglossia pode provocar situações equívocas onde a mínima diferença no modo de falar a língua comum aos dois campos opostos na situação de guerra pode funcionar como um sinal comprometedor capaz de favorizar a identificação do inimigo. A primeira ocorrência deste tipo de situação em que o inimigo se revela através de uma diferença linguística é tão conhecida que a palavra dirimente se tornou um termo genérico. Trata-se do nome shibboleth, ortografia inglesa para nome hebraico šibolet “espiga” ou segundo outra interpretação, “vórtice” (Speiser, 1942: 10). Durante uma guerra civil que opôs os membros da tribo de Efraim aos galaaditas no fim do segundo milênio a.C., os efraimistas não podiam realizar a consoante inicial palatoalveolar [∫] e pronunciavam esta palavra como sibolet. Essa particularidade fonética denunciava os efraimitas aos galaaditas que os mataram sem piedade (Juízes 12:4-6). Na recuperação literária que o poeta Paul Celan fez dessa palavra, o termo Schibboleth (em ortografia alemã) foi alterado e passou do sentido de sinal comprometedor àquele de senha (“Schibboleth,” Von Schwelle zu Schwelle e “In eins”, Die Niemandsrose).
Numa época mais recente, os procedimentos para detectar o inimigo mediante um índice linguístico foram utilizados durante a guerra civil libanesa (1975-1990). Os Falangistas que procuravam os palestinenses, para matá-los, verificavam a identidade das pessoas que encontravam no seu caminho mostrando-lhes um tomate e perguntando o que era: se as pessoas interrogadas diziam banadura, nome do tomate no dialeto árabe libanês, os deixavam passar incólumes; mas se diziam bandura com a pronunciação sincopada que caracteriza essa palavra no dialeto palestinense, os Falangistas matavam-nos.
Às vezes a detecção dum inimigo não resulta dum teste intencional, mas de um erro involuntário que revela o pertencimento de alguém ao campo oposto. Assim a pouco tempo da sua captura em janeiro de 1965, o espião israelense Eli Cohen, que conhecia perfeitamente a língua árabe e o dialeto sírio dessa língua, despertou a suspeição do presidente da Síria Amīn al-Ḥāfiẓ, quando usou a expressão “mesquita dos muçulmanos”, para referir-se a uma mesquita. Dado que Eli Cohen fazia-se passar por um Sírio muçulmano (sunita), o fato de ele adicionar o determinante “dos muçulmanos” ao nome “mesquita” revelou que não podia ser um Sírio sunita porque, de uma perspectiva muçulmana, uma mesquita (jāma‘ ou masjid) é necessariamente e implicitamente muçulmana. Então não precisa ser chamada «dos muçulmanos». Isso é um exemplo típico das “armadilhas de espiões” (spy traps) que manifestam a existência de fronteiras discretas até nas situações de homoglossia (Coulmas, 1981: 362-365).
4. A fascinação pela língua do Outro
Nos casos de heteroglossia entre os inimigos implicados numa guerra, uma das tarefas da espionagem é a aprendizagem intensiva da língua do adversário. Este modo de superar a heteroglossia pode gerar efeitos paradoxais como a fascinação pela língua e pela cultura do Outro hostil. E, dado que o conhecimento duma língua dá acesso ao modo de pensar e de perceber o mundo dos falantes daquela língua, a distância aparentemente insuperável entre dois campos inimigos pode reduzir-se, consideravelmente, uma vez que a homoglossia substitui-se à heteroglossia. Obviamente essa homoglossia secundária obtida individualmente pelo espião é muito diferente da homoglossia primária que caracterizava os conflitos nas situações mencionadas acima. Quando os adversários são divididos pela heteroglossia, a homoglossia faz figura de exceção e permite a quem conhece a língua do inimigo ocupar uma posição intermediária entre o próprio campo e o campo oposto. Conheci pessoalmente no contexto israelense pessoas otimamente treinadas em árabe ou em persa que tinham desenvolvido sentimentos de simpatia pela língua e pela cultura das nações e dos países que estavam ainda espionando ou que tinham espionado no passado. Em certos casos o conhecimento teórico e prático da língua e da cultura dos inimigos pode provocar uma situação na qual o espião sente-se mais perto das pessoas que ele espiona do que das pessoas que mandam-no espionar. Isso foi o caso do coronel T.E. Lawrence, enviado em 1916 no Hejaz pelo serviço secreto britânico para organizar militarmente a revolta árabe contra o poder otomano. O conhecimento íntimo que Lawrence teve da língua e da cultura árabes tornaram-se uma fascinação e uma identificação com a causa do nacionalismo árabe e lhe fizeram esposar as aspirações nacionalistas além das posições oficiais ou semioficiais da Grã-Bretanha com respeito ao futuro do Oriente Médio após a Primeira Guerra Mundial. Um índice semiótico permite entender que o apelido Lawrence of Arabia não foi exagerado: na Conferência de Paz de Paris, em 1919, Lawrence aparece numa fotografia junto com o emir Faiçal. Naquela imagem ele já não é vestido com o seu qamīṣ e o seu bisht brancos, mas conservou a keffiyeh combinada com o seu uniforme de oficial britânico. Durante as batalhas que ele organizou com os irregulares árabes, o uso do vestido tradicional era um modo de camuflar a presença dum espião britânico no meio dos insurgentes hijazis além de outras motivações caraterísticas do espírito orientalista de Lawrence (Alkabani, 2016). Seja como for, a preservação dum símbolo vestimentário árabe após o fim das hostilidades revela o desejo de Lawrence de identificar-se com a causa árabe e com a nação árabe.
Conclusão
O meu rápido panorama da articulação entre homoglossia e heteroglossia em situações de guerra revela que a heteroglossia absoluta é impossível quando dois grupos humanos se combatem. Inclusive quando os dois campos não falam a mesma língua, a condição necessária para vencer os inimigos é a compreensão da língua do adversário. Esse imperativo explica a criação de homoglossia secundária, ou seja, homoglossia sobre fundo de heteroglossia reservada à categoria dos espiões. A heteroglossia não pode manter-se a longo prazo numa situação de beligerância porque todos os contatos humanos, inclusive os contatos agressivos e mortíferos, implicam uma comunicação verbal. Ao não existir esse tipo de contato, não se pode falar de guerra mais ou menos simétrica, mas de massacre mudo, de matança sem palavras. Será que isso aconteceu durante as primeiras fases do contato entre os Europeus e indígenas no início do descobrimento das Américas e de outras partes do mundo? — É pouco provável dado que o primeiro contato entre os Europeus e os Outros extra-europeus se parecia com um encontro tetanizante para ambos os lados. Esse estupor não gerava necessariamente a vontade de matar. O início da agressividade entre uns e outros correspondeu provavelmente à uma fase ulterior quando os conquistadores e os conquistados já tinham estabelecido pontes de comunicação através da aprendizagem parcial da língua do Outro.
Bibliografia
ALKABANI Feras (2016) “The Meanings of Oriental Masquerade in T.E. Lawrence’s Oriental
Ventures,” British Journal of Middle Eastern Studies, 44(1): 110-129.
ASLANOV Cyril (2023) “The Word ‘War’ in a War of Words,” in: Журналістика та реклама:
вектори взаємодії (Київ, 22 березня 2023 року), Kiev, State University of Trade and Economics, 2023 : 13-18.
COULMAS 1981. “Spies and Native Speakers,” in: Florian Coulmas (ed.), A Festschrift for
Native Speakers, Berlim : De Gruyter, 355-368.
SPEISER Ephraim A. (1942) “The Shibboleth Incident,” Bulletin of the American Schools for
Oriental Research, 85: 10-13.
WATKINS Calvert (1986) “The Language of the Trojans,” in: Machteld J. Mellink (ed.), Troy
and the Trojan War. A Symposium Held at Bryn Mawr College, October 1984, Bryn Mawr, PA, Bryn Mawr College, 45-62.