Revista ENFIC

Revista do Encontro Nacional
e Internacional de Filosofia Clínica

A terapia na primeira infância – Relatos de uma filósofa clínica no atendimento a crianças

A terapia na primeira infância
Relatos de uma filósofa clínica no atendimento a crianças

Jandira Bordin
Filósofa Clínica (Chapecó/SC)

Sou filósofa clínica há mais de 15 anos, sempre atendendo jovens e adolescentes. Mas, nos últimos anos, talvez pós-pandemia, um fenômeno vem chamando minha atenção: crianças começaram a chegar no consultório, o que fez com que minha pesquisa ganhasse novos modos de ser uma filósofa clínica. Nos relatos clínicos com os pais, pude perceber que alguns deles tiveram um tempo maior para olhar para seus filhos durante a pandemia. Eles passaram a enxergar questões das quais precisavam de ajuda? Outros relatos falavam de questões que já estavam presentes e, agora, manifestaram-se com mais intensidade.  Os Assuntos Imediatos que levam crianças ao consultório são os mais diversos possíveis. Não há uma regra para atender crianças – não em Filosofia Clínica –, mas alguns elementos pedem atenção e pesquisa.

Dependendo da faixa etária dessas crianças é a própria base categorial que chega primeiro na clínica. Encaminhados pela escola, pelos avós e na maioria das vezes pela mãe aflita que vem anunciar o filho ou um diagnóstico de outros profissionais. Alguém que vem trazer o Assunto Imediato, relatar a queixa, anunciar o partilhante. O filósofo clínico precisa estar atento a essa tradução, pois a pesquisa já começou, mas o partilhante ainda não chegou.

A Base categorial (BC) é o que apresenta a criança, e por vezes, é uma BC exigente, barulhenta, habituada a catalogar crianças.  Acalmar esta BC com a escuta pode ser uma boa estratégia clínica.  É indicada a escuta atenta, a paz e o acolhimento destes anunciantes. Colher estas informações, sem deixar contaminar a historicidade da criança, requer habilidade na clínica, pois nem sempre os pais, ou aquele que anuncia, sabem traduzir a criança; ou seja, há relatos que são verdadeiros equívocos. Há um lugar, na clínica de acolhimento, destas queixas. Se estas informações que chegam a priori serão utilizadas ou não durante o processo clínico, o caminho dirá. A priori não sabemos.

Eu costumo guardar as queixas, com todo o carinho, em um bauzinho: guardo ali as vontades, as volições, as buscas, os desejos, as listas desses que anunciam a criança, e aguardo com paz a criança chegar. Conforme vou atendendo, se necessário, tiro do baú a vovó anunciante, vou trazendo de volta para clínica a mamãe, o papai, o professor etc. Os elementos da BC podem complementar a historicidade, servir como enraizamento, um suporte via vice-conceito ou até mesmo elementos submodais saindo do baú.

Para atender crianças é importante ficar atento ao modo de ser filósofo clínico. Digo isso, pois a linguagem é muito valorizada na clínica. O falar tem uma inclinação, uma proporcionalidade maior para a realização da clínica em nossos dias. Aliás, é a inclinação da própria BC que a comunicação aconteça pela fala. Na criança é comum haver outros modos de expressão, por vezes, muito mais coerentes do que a fala. Observar e não significar os gestos, os movimentos, o modo de brincar, pintar, desenhar, caminhar, chorar, e o próprio silenciar, é de extrema importância no processo terapêutico. Pode ser um modo diferente do qual estamos habituados ao colher a historicidade.

É muito interessante observar que, por mais que a criança seja falante, há outros elementos, outros modos de ser, que por vezes enfraquecem a fala ou chegam antes da fala. Elementos que “chegam chegando”, não há um filtro, uma máscara, há uma espontaneidade da criança. Ser eclético e maleável, é necessário para acompanhar estes partilhantes. O filósofo clínico que não tem interseção com crianças, não deveria aventurar-se por este caminho.  A ética clínica deve prevalecer. Qualificar a interseção se faz necessária.

Claro que estou falando de um lugar onde para mim a criança é parte de mim. Estar com ela é muito fácil, é um elemento de minha EP e a interseção é instantânea. Meu consultório é uma mescla, pois, em muitos casos, depois de atender a criança atendo os pais, os familiares, os adultos envolvidos com essa criança. E tenho os mesmos cuidados, a priori, em não deixar que esta criança ofusque o adulto na clínica. Na historicidade é outra conversa, pois alguns adultos podem ser ofuscados por uma criança, e isso não está certo nem errado, é simplesmente um modo de ser, uma manifestação da EP. 

Na minha historicidade, sempre estive com crianças; a interseção com elas é sempre positiva, não me lembro de ter uma só criança de que eu não tenha gostado. Elementos da nossa própria história podem migrar para o consultório e contribuir na clínica. A Filosofia Clínica é um método aberto. Nas interseções entre partilhante e filósofo clínico os elementos podem ser, via porosidade tanto na estrutura da criança como do filósofo clínico, de outra ordem e de difícil pesquisa. O que entra em interseção pode ser pela leveza do ser ou pela própria brincadeira.

Há pais que perguntam: “O que aconteceu? Você poderia nos ensinar? Pois, nosso filho está diferente, tem algo estranho nele, mas bom”. E em alguns casos o terapeuta não tem como dizer o que houve. Acolher crianças é tão tranquilo e leve para mim, mesmo considerando todas as complexidades e responsabilidade clínica. Se eu percebesse que minha interseção estivesse afetada por qualquer razão, a responsabilidade ética me pediria para interromper este trabalho e indicar essa criança a outro colega.

Um dos cuidados que o FC deve ter é de não perder a criança de vista. Acolher a queixa sem deixar contaminar, via agendamentos, o encontro do FC com essa criança.  Pois, a BC já nos coloca que “à frente de uma criança tem sempre um adulto que é responsável por ela”. E, de fato, essa criança precisa que um adulto seja responsável por ela. Mas eis o cuidado: é fácil cair na armadilha do anúncio e, por vezes, esta criança pode estar engessada a modos de ser do pai, da mãe, da escola etc. A ideia aqui não é entrar em choque com a BC, apesar de este ser um dilema filosófico da humanidade; aqui trago apenas uma pincelada para que possamos refletir sobre.

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