Revista ENFIC

Revista do Encontro Nacional
e Internacional de Filosofia Clínica

A força espiritual da palavra no diálogo da filosofia clínica*

A força espiritual da palavra no diálogo da filosofia clínica[*]
Will Goya, filósofo clínico
www.willgoya.com

5 – A disposição autêntica e amorosa do filósofo clínico para dialogar:

Esclarecendo, o conceito de pathos, do qual é oriunda a palavra “paixão”, tem diversas manifestações semânticas ao longo da história, desde os gregos clássicos aos dias atuais, traduzindo ideias de sofrimento, passividade, erotismo e patologia. É em razão disso e segundo as minhas próprias pesquisas e reflexões que delimito aqui um conceito lato sensu, não filológico, que estou a chamar na Filosofia Clínica de pathos espiritual ou amoroso, sem amarrações necessárias com a experiência religiosa ou com a hermenêutica do grego antigo. Claramente inspirado pelo pensamento de Pierre Hadot, que propõe na obra de Plotino a tradução de pathos usando a expressão “estado da alma”, referindo-se “menos à paixão, isto é, ao sentimento propriamente dito, ou à emoção do que à modificação da alma que o sentimento ou a emoção representam”[1]. Somente assim, creio, a filosofia amorosa de Lúcio Packter pode intentar um resgate com o sentido originário do “amor à sabedoria” na arte do diálogo. É nesse âmbito que Spinelli também corrobora ao esclarecer o sentido etimológico da “filo-sofia” (philos – φίλος e sophia – σοφία), no qual os gregos designavam um modo de aprendizagem ao todo diversificado do saber diante de si mesmos e do cosmos. “Por ser um ‘amor’, expressava uma atitude (disposição ou ânimo – páthos) a construir, uma habilidade que só o exercício poderia, na prática, consolidar ou definir”.[2]

Na esfera da terapia, tomando o consultório apenas como uma de muitas possibilidades de atuação, o exercício espiritual praticado pelo filósofo clínico se efetiva através do diálogo filosófico com outra pessoa sobre a realidade dos conceitos vitais que ela estabelece no mundo em sua volta, tal qual este foi percebido e conflitado na sua historicidade. Nos princípios éticos e amorosos da escuta radical em uma relação de alteridade, tanto o filósofo clínico quanto seu partilhante são envolvidos em um projeto terapêutico que recomenda o desenvolvimento da autenticidade nos limites e modos da estrutura de pensamento de quem se oferece na condição de orientando. No diálogo filosófico-clínico, a dimensão phática, o estado de espanto original (anterior ao querer e subsidiário da reflexão), surpreende a experiência da obviedade sobre as coisas, desfazendo-se da sua plena convicção por meio da dúvida, do inusitado, do estranhamento emotivo etc., e instaura na consciência um lampejo de lucidez sobre o que para ele é uma realidade mais autêntica. Essa “dis-posição” afetiva e fundamental, que na terapia motiva buscar saber e viver de forma autêntica o que é verdade no íntimo, pode se tornar muitas vezes a fonte motora, o sopro da vida de toda uma existência. Não raro, isso é um grandioso exercício de vida, tão difícil quanto extraordinário e sublime. Através de um trabalho clínico bem empreendido, filosoficamente bem pensado, é que se pode verificar nos testemunhos do partilhante a sua própria transformação existencial, fruto conquistado do melhor de si.

Por domínio metodológico, prática clínica, conhecimento teórico, amizade e intuição, o filósofo clínico pesquisa as melhores oportunidades terapêuticas para sempre reinstaurar no diálogo o pathos espiritual que poderá instigar no partilhante um processo de tomadas de consciência e de responsabilização das suas escolhas e impossibilidades. Movimento amplo e profundo capaz de ajudar o partilhante ao seu modo pensar por si mesmo, sem pensar por ele. Por maior seja a boa vontade e influência que possua o filósofo clínico, este não tem a condição mágica de existir e fazer esforços no lugar do outro. Diligente, o filósofo não pode se distrair quanto à sua inalienável responsabilidade de ser outrem no mundo subjetivo do partilhante, tão somente (o que não é pouco) o encontrando na qualidade ética e amorosa de um hóspede, com hospitalidade. Sua “função moral obrigatória é se conservar sempre admirado [pathos] perante a infinitude do outro, da primeira à última consulta, reconhecendo de uma vez por todas a própria ignorância sobre as profundidades que nele se ocultam”.[3] Por isso mesmo, cabe ao filósofo clínico uma tarefa dupla, já que também não pode se descuidar de si mesmo, de reconhecer em si próprio a grandeza phática e filosófica da outridade. Caminho que lhe exige muitas vezes também cursar a terapia na condição de partilhante de outro colega seu. Assim sendo, o filósofo clínico deve incessantemente se realimentar do pathos amoroso e espiritual, mediante os seus próprios submodos mais adequados, cuidando-se para não dessensibilizar sua percepção crítica de mundo e, sobretudo, sua generosidade afetiva para o acolhimento autêntico. Pois, na mesma medida em que a filosofia se caracteriza por um amor à verdade, o filósofo clínico também se apresenta sendo um cuidadoso amigo das verdades subjetivas de outrem. (…)

Fazendo essas considerações aos olhos da Filosofia Clínica, é importante distinguir dois diferentes modos éticos de se interpretar e conduzir o fenômeno do pathos espiritual no processo formador e desenvolvente da estrutura de pensamento. Clareza que permitirá ao filósofo clínico saber a melhor condução terapêutica (submodos clínicos/Packter – exercícios espirituais/Hadot) para que esse insight de autoconvocação à autonomia do pensamento, essa “dis-posição” espiritual da consciência, possa efetivamente ser bem conduzida e exercitada até o pleno vigor do máximo subjetivo de autenticidade que uma pessoa é autonomamente capaz de assumir e nele se manter.[4] Uma caminhada existencial nem sempre desejada ou percorrida por aqueles que se propõe à terapia filosófica, sem julgamentos a priori quanto a méritos ou deméritos nisso. Porém, quando uma pessoa atinge pela autonomia esse estado de repleção consciencial, tornando-se profundamente autêntico e fiel ao seu próprio modo íntimo de ser, pelo mesmo princípio ético adquirido se responsabiliza e interage com alteridade no mundo em se situa. Razão pela qual, a adjetivação valorativa de “espiritual” expressa um sentido de excelência ou plenitude, seja pela sensação de coerência organizacional íntima com as próprias forças ou pela sensação intersubjetiva de plena integração sistêmica com (o que se entender por) totalidade universal.

5.1 – A alteridade filosófico-clínica do pathos para o “melhor de si” de alguém:

(…) Para que o diálogo filosófico não seja reduzido a mero instrumento do poder de o filósofo ensinar no consultório e o conhecimento não se disfarce em justificativa da força (herança de uma formação academicista), é preciso manter atenção plena à experiência da subjetividade do outro, que se manifesta em sua absoluta estranheza e distanciamento em relação ao “si mesmo”. Ou seja, somos cada qual infinitamente únicos em nossa diferença singular. Na ética da alteridade, o conceito de “outro” não é um equivocado “não-eu”, estabelecido marginalmente pela negação ou indiferença ao “eu”. Ao contrário, a noção ética de outridade só se revela na efetiva presença do “eu de outrem”. Enquanto um autêntico filósofo clínico respeita a distância subjetiva que o separa das diferenças do outro, há quem estabeleça um total afastamento da outridade das pessoas, acreditando-se ainda gentil. Há nisso uma poderosa armadilha conceitual de autoengano. Mas como pode o filósofo saber se está reificando a relação clínica com seus partilhantes quando mantém a ilusão de lhes estar fazendo algum bem? A questão não se resolve com uma resposta ideológica, pela racionalidade que se autojustifica facilmente. Anterior ao pensamento e perpassando o ato de duvidar, o pathos do “emocionamento” amoroso, se surpreende e se atrai com a presença da diferença, no sentido radical do que isso representa: fascínio filosófico pela infinitude da descoberta. Como disse outrora, “Descobrir que a pessoa ao lado tem o poder de ser infinito em sua composição íntima é saber que a mesma grandeza que nos separa pela diferença também nos aproxima pela admiração”.[5] Muito além de um sentimento piegas, constitutivamente, não há clínica filosófica sem a instauração do pathos amoroso no diálogo da alteridade. Como disse certa vez, “Curiosidade sem carinhos é como ferir desinteressadamente. Mais que desejo, conhecer é colocar amor no desconhecido, e aventurar-se”.[6]

Em nossa época, herdeira dos ideais racionalistas do Iluminismo, ainda é a forma de orientação que mais predomina nas demandas de consultório. Sob forte tradicionalismo histórico, acontece muito pela semiose verbal, em um processo lógico dialético, estabelecido progressivamente na relação de alteridade entre dois papéis existenciais: o do filósofo e o do partilhante. Nesse sentido, enquanto disposição no filósofo clínico, espiritual é a máxima dedicação de amor que se é capaz em cada momento para os cuidados terapêuticos dos outros, através de um esforço integrado de coerência interna e revitalização da própria autenticidade pelos vínculos afins que o alimentam e o mantém existencialmente no mundo. Enquanto ato no partilhante, é o fortalecimento clínico da sua potência de autenticidade em seu próprio modo de ser e de coexistir no contexto da realidade em que instaura e sustenta afinidades existenciais.[7]

5.2 – A transversalidade filosófico-clínica do pathos para o “além-de-si” de alguém:

Outra forma terapêutica praticada pela Filosofia Clínica, com a finalidade do despertar espiritual da máxima autenticidade subjetivamente possível à cada consciência se dá pela “transcendência do si-mesmo”, quando isso em grande parte não depende do progressivo esforço de autoafirmação da vontade. Chamo-a de pathos amoroso da transversalidade. É antes um movimento filosófico e intuitivo de “dis-posição” phática inspirado pela cedência de afinidade aos impulsos de reconhecimento espiritual das vizinhanças existenciais localizadas no entorno, quando na presença de acontecimentos transversais. Procedimento filosófico-clínico que Lúcio Packter, em seus cursos, chama de “soltar a própria estrutura de pensamento”, como a recomendar se permitir seguir as profundas intuições da alma, buscando e sendo atraído por conexões sistêmicas no mundo. Como resultado, há nesse processo uma descaracterização da dualidade eu-outro[mundo/coisas] em uma intuição sistêmica da realidade por efeito ou interação de um fenômeno transversal, isto é, “algo” inespecífico que cruza, atravessa, inusitadamente a consciência de forma a romper (susto, espanto) os processos identitários da intencionalidade do eu em estado de foco. Sem prejulgamentos momentâneos como destino, sorte, Deus, sincronicidades etc., transversal pode ser uma percepção phática surgida através de uma página aberta e lida ao acaso; de um sonho distante das analogias a conteúdos biográficos; de atividades farmacológicas por efeito de medicações, drogas, alimentação; de pesquisas aleatórias, por livre curiosidade, em plataformas multimidiáticas como tablets, de manifestações delirantes ou epifanias e outros. São como que janelas intuitivas, existenciais, abertas por uma distração voluntária ao aparecimento do inusitado, da criatividade que se revela como inédita e orientadora de vida.

Traçando paralelos e esclarecendo diferenças presentes nos elementos discursivos do diálogo, nos limites sintáticos da linguagem, é importante observar em particular três sentidos interpretativos para a ideia do “não-eu”. Isso para que o diálogo entre filósofo clínico e seu partilhante seja esclarecido quanto aos diferentes significados dos sujeitos linguísticos enunciados nas narrativas de uma estrutura de pensamento. 1º Na completa ausência do pathos – como reificação – pela indiferença ou negação da humanidade da existência de outrem (numa relação entre o “eu” e “aquilo que não é, em si mesmo, um ‘outro eu’”, isto é, uma pessoa reduzida à condição pronominal de “isto/aquilo”); 2º como pathos da alteridade – por autonomia na relação de outridade entre o “eu” e o “eu de outrem” (um reconhecimento racional e digno entre o “si mesmo” e “aquele que não sou eu”); 3º como pathos da transversalidade – pelo reconhecimento legítimo de um “íntimo absurdo” na relação entre o “eu” e a inefabilidade da existência, através de um paradoxo expressivo e da inutilidade da razão discursiva. É como se dissesse: “senti uma imensa vontade de virar o carro à esquerda, sem motivo algum, o que me levou a reencontrar um velho amigo que há anos não revia”; ou “sem querer, eu próprio me surpreendi com o que havia escrito e nem notara. Fui eu, mas não fui eu, entende?”; ou ainda “não fosse um desconhecido que me perguntasse as horas e eu, assustado, interrompesse minha caminhada naquele ponto, certamente teria sido atropelado. O próprio sujeito me disse que nem ele mesmo não sabia o porquê de haver me perguntado as horas, pois também tinha relógio”. Infinitos outros exemplos, tais como a interpretação livre de uma página aberta ao acaso, a revelação simbólica da mística mundo pelos oráculos do I Ching e do Tarô etc.

No pathos amoroso da alteridade há um movimento íntimo de volição da estrutura de pensamento no esforço de autonomia para “ir até” a realidade do mundo a fim de conhecê-lo. É o espanto filosófico instaurador da lucidez que se produz quando a consciência se autoidentifica responsável pelo próprio pensamento no ato do falar. Distintamente, no pathos amoroso da transversalidade o movimento da estrutura de pensamento acontece no sentido inverso da aquisição do conhecimento, em um “deixar vir” à presença a realidade do mundo. Um espanto filosófico lúcido que se produz através de uma passividade ativa, ou seja, por uma receptividade gentil e sem rígidos controles sobre os próprios julgamentos de valor para o acolhimento na vida do que ainda é mistério. Esclarecendo, na clínica filosófica, somente após uma ampla pesquisa de mapeamento existencial de uma estrutura de pensamento, reconhecendo a inexistência de mecanismos autoalienantes, é que se pode ceder livremente às intuições do pensar e do agir. Após (não antes) se verificar que as verdadeiras intuições não se tratam equivocadamente de impulsos alienadores característicos de armadilhas conceituais contraproducentes. Em outras palavras, no vínculo comunicativo que se forma entre o filósofo clínico e o seu partilhante o estabelecimento do pathos amoroso da alteridade deve anteceder à prática dos submodos terapêuticos (exercícios espirituais) que poderão instaurar o pathos amoroso da transversalidade.

Naturalmente, enquanto nos reconhecemos como seres humanos racionais, a potência de autenticidade então se configura sem as demarcações fenomenológicas da relação eu-mundo pela intencionalidade da consciência e o esforço de autonomia…. Todavia, nesse movimento filosófico-clínico da transversalidade da consciência não há defesas ou prévias recusas da racionalidade, o que subsidiariam uma inaceitável prática irracionalista. O cálculo racional apenas é temporariamente suspendido, sem nenhum prejuízo imediato às responsabilidades estabelecidas com as circunstâncias entorno. Em um linguajar popular, trata-se de uma sábia “carona existencial”, oferecida aos recursos da caminhada terapêutica pela “dis-posição” filosófica de um pathos (surgida na estrutura de pensamento do partilhante, reconhecida e anunciada pelo filósofo clínico) não mais interpretado, conduzido e reinstaurado somente pelo discurso argumentativo lógico, linear. A vontade intelectiva apenas se realiza no sábio aproveitamento das oportunidades aleatórias circunstanciais (ou, aparentemente, sem quaisquer padrões de causalidade reconhecíveis) que estabelecem conexões sistêmicas capazes de transformam a própria individualidade em uma força identitária coletiva. Afinal, como saber – garantia epistemológica pós-iluminista – se todos os nossos (supostos) pensamentos, emoções, sensações e outras percepções, são marcados pelo eixo individual da autoria?

Muitíssimo interessante é notar o fenômeno do pathos amoroso da transversalidade em diferentes espaços de interlocução e cultura, como tão frequentes se mostram em autores como Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Uma riqueza de aprendizagens para os estudiosos da arte do diálogo na Filosofia Clínica. Não é à toa que Lúcio Packter muito ensina Filosofia Clínica utilizando também a literatura, as artes e outros saberes transversais. Em particular, Grande Sertão: Veredas é valioso exemplo. O livro de Rosa inovou o senso de linguagem, inventando novos vocábulos, semânticas e sintaxes, reunindo à sua profunda erudição linguística a influência das falas populares e regionais. Comparativamente, o que Lúcio Packter é para a história contemporânea da filosofia, Guimarães Rosa o é para a literatura brasileira e mundial. A belíssima análise de Héctor Olea esclarece o leitor sobre os riscos de se interpretar a fala/silêncio da personagem Riobaldo (por extensão Guimarães Rosa) como demasiadamente simples ou pobre:

‘Digo direi, de verdade: eu estava bêbado de meu. Ah, esta vida, às não-vezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande’. (GS:V, 319) E é grande e insondável como o próprio sertão nas labaredas da sua verdade verbal. O conflito dialético desta linguagem é provocado pelo fato da tese da palavra e a antítese do silêncio não atingirem a síntese dum tertium quid. Portanto, a eloqüência (sic) desse discurso, que Riobaldo registra desesperadamente, fala por si só. ‘Mas eu tirei de dentro do meu tremor as espantosas palavras’. (GS:V, 317). O que ele sentiu ouvir no ermo do lugar, foi mesmo o irredutível disparate dessa absurda presença que a gente chama ‘silêncio’; silêncio que chegou até seus ouvidos porque, de fato, ‘o Aquilo’ não veio. Mais nada. Nada foi-lhe revelado, a não ser a negatividade de uma ausência presente: ‘não sendo estranha coisa de se ver’. (GS:V, 318) Duas negações implicam uma afirmação; porém, no processo gerado pelas oposições riobaldianas, essa presença não é precisamente positiva, mas demoníaca. Esse diabo do silêncio-em-ação…[8]

Por isso, a natureza transdisciplinar, própria da Filosofia Clínica, admite a não-compreensão junto à compreensão, evitando o reducionismo de a tudo necessariamente explicar. Nesse sentido, admite a existência de fenômenos existenciais em diferentes níveis de realidade, geridos por respectivas lógicas ou nexos próprios, reestabelecendo articulações multidimensionais da vida em suas totalidades integradoras. Sobretudo porque a metodologia clínica da subjetividade requer uma objetividade artesã e sensível. Como se constata na experiência terapêutica, nas literaturas religiosas, psicológicas, antropológicas etc., pode uma experimentação espiritual de vínculo sistêmico com a totalidade universal, através de faculdades psíquicas insuspeitas, “simplesmente acontecer” em uma estrutura de pensamento subjetiva por efeito de um movimento transversal, inespecífico e inidentificável conceitualmente.

Esclareço: assim como o verbo “chover” tem o sujeito indeterminado, mesmo assim existe como fenômeno ecológico autêntico, independentemente do antropocentrismo do julgamento (quem choveu?). Da mesma maneira, o instinto anterior à escolha dá pulsão biológica ao desejo, que uma vez saciado logo termina por autocombustão (quem erotizou a pele de hormônios sexuais inatos?). Assim também a vivência mística dos relatos de “sensações oceânicas” desidentificam os vínculos entre a constatação do mundo e a experiência interpretativa do predicamento egocêntrico (quem fabricou a profunda intuição criativa do pensamento e da ação absolutamente inéditos, para além dos próprios limites cognitivos reconhecidos, somente anunciada no instante da sua aparição pelo espanto quanto à autoria?).

(…) De novo, é bastante adequada a retomada da figura magistral de Sócrates. Não apenas como símbolo da história da filosofia, mas sem dificuldades poderia também ser representante, anacrônico, da Filosofia Clínica – preservando-se as naturais diferenças. Sob a forma refinada dialética que Platão lhe deu, assume a função espiritual da filosofia como modo de vida, adotando o papel de um filósofo terapeuta que intervém sob a crise dos seus interlocutores, tomando para si as dúvidas, angústias e perturbações pessoais que lhes afligiam, de modo a reencontrarem a confiança perdida no logos através do exercício maiêutico. À semelhança de Lúcio Packter, era um homem do cotidiano da sua cidade, que falava com todo mundo e cujo discurso filosófico não tinha um fim em si mesmo, estando sempre a serviço de uma vida filosófica.

Sócrates é igualmente um extraordinário e curioso exemplo de um filósofo que consagrou sua vida à plenitude da autenticidade ao mesmo tempo pelos dois vieses filosófico-clínicos aqui apresentados, cada qual em sua máxima potência. As suas experiências pháticas espirituais e amorosas eram oriundas e desenvolvidas 1º) tanto pelo método dialético ao extremo rigor da racionalidade, 2º) quanto nascidas e intuitivamente conduzidas sob a aparição transversal do seu espírito guia daímon, que não lhe conduzia o raciocínio, possuindo a Sócrates a completa liberdade para fazer suas escolhas. Seu daímon lhe provocava constantes reinstaurações do pathos espiritual, a fim de que Sócrates exercitasse sua autonomia na busca pela verdade, e por extensão o bem. Em suas palavras, colhidas por Platão quando em sua própria defesa:

Uma inspiração que me vem de um deus ou de um gênio, da qual Meleto fez caçoada na denúncia. Isso começou na minha infância; é uma voz que se produz e, quando se produz, sempre me desvia do que vou fazer, nunca me incita.[9]

O daímon se manifestava transversalmente em sua consciência tanto pela fala quanto pela presentificação do silêncio dessa mesma voz ao se manifestar pela sua ausência. Ainda quando isso lhe implicou no autossacrifício para a sua própria morte. Eis o que diz Valcicléia Pereira da Costa:

Considerando a ação benéfica do ‘daímon’ nos vários momentos de sua vida, sempre orientando para ações favoráveis e evitando outras que poderiam prejudicá-lo, e considerando o seu silêncio nos dois momentos decisivos, tanto na saída ao tribunal, como no decorrer do processo, deduz que o resultado do processo não seria prejudicial para ele, mas que seria um bem sob o ponto de vista da divindade.[10]

Na opinião de Pierre Hadot, Sócrates era claramente um mediador entre os mistérios dos deuses e os homens, tanto na vigília como no sono, e não um mero intermediário do seu daímon:

O daímon de Sócrates era, nós sabemos, a inspiração que se impunha por vezes a ele de uma maneira completamente irracional… Esse elemento irracional da consciência socrática não é estranho, aliás, à ironia socrática. Se Sócrates afirmava nada saber, talvez fosse porque ele se remetia, na ação, ao próprio daímon e porque confiava no daímon de seus interlocutores. […] O demônio de Goethe tem todos os traços ambivalentes e ambíguos do Eros Socrático… uma força que não é nem divina, nem humana, nem diabólica, nem angelical; que separa e que une todos os seres. Como o Eros do Banquete, só se pode defini-la por negações simultâneas e opostas. Contudo, é uma força que dá àqueles que a possuem uma potência incrível sobre os seres e as coisas. O demoníaco representa no universo a dimensão do irracional, do inexplicável, uma espécie de magia natural… força motriz indispensável a toda realização, é a dinâmica cega, mas inexorável, que é preciso saber utilizar, mas da qual não se pode escapar.[11]

Interessante também e, no conjunto da obra muito esclarecedora, é a explicação desse pathos espiritual da “transcendência do si mesmo” feita por Daisetz T. Suzuki, no livro A doutrina Zen da não-mente, referindo-se à “Mente da Emancipação”, na experiência budista. Naturalmente, as imensas diferenças de métodos, valores e propósitos entre a iluminação budista (não-religiosa) e os exercícios espirituais para além da intencionalidade do eu, propostos pela Filosofia Clínica, não poderão ser aqui analisadas. Dentre elas, ressalto apenas o fato de que na clínica filosófica a transversalidade da consciência (fenômeno do não-eu incidindo à estrutura de pensamento) pode se dar a qualquer momento, de forma sutil ou intensa, sem necessários vínculos de experimentação mística, religiosa ou causador de mudanças radicais no modo de ser de alguém. Profundo erudito de diversas línguas e filosofias clássicas do Ocidente e do Oriente, o professor de filosofia budista, referindo-se às estratégias de contemplação e aprendizagem – escuta do inefável – dos mistérios e estratos da realidade que não podem ser perspectivados na inteligência individual ou experimentados via antropomorfização da natureza, reconhece os limites da linguagem para o tratamento do assunto e a inevitabilidade de enunciados paradoxais:

Embora seja difícil, e muitas vezes enganoso, aplicar a maneira moderna de pensar aos mestres antigos, especialmente aos mestres zen, devemos até certo ponto, arriscar-nos a essa aplicação, pois de outro modo não haverá oportunidade sequer para vislumbramos os segredos da experiência do Zen. […] Para usar a terminologia budista, essa apreensão é feita pela não-discriminação; isto é, por uma discriminação não-discriminadora. […] ‘Ver o Inconsciente’ não significa qualquer forma de autoconsciência, nem mergulhar em estado de êxtase, indiferença ou apatia, quando todos os traços da consciência comum são apagados. ‘Ver o Inconsciente’ é estar consciente e ainda assim inconsciente da natureza-própria. Porque a natureza-própria não deve ser determinada pela categoria lógica de ser e não ser; tratá-la desse modo significa trazê-la para o nível da psicologia empírica. […] A doutrina do Inconsciente aqui exposta é, em termos psicológicos, a doutrina da absoluta passividade ou da absoluta obediência. Também pode ser designada como ensinamento da humildade. Nossa consciência individual, imersa na Inconsciência, deve se assemelhar ao corpo de um homem morto, como costumava dizer S. Francisco para ilustrar a idéia (sic) da mais alta e perfeita obediência. Tornar-se como um cadáver ou um pedaço de pau ou de pedra, embora de um ponto de vista deveras diverso, também parece ter sido uma comparação cara ao Zen-budismo.[12]

Quem sabe se o eminente professor de filosofia budista, D. T. Suzuki, ficasse mais aliviado quanto ao acertado bom uso da metáfora sobre a aprendizagem do ser, “obediente como um cadáver ou uma pedra”, se tivesse tido a oportunidade de ouvir a bela letra de Epitáfio, cantada pela banda Titãs, cujo tema se refere a um tipo de poesia que encerra um elogio breve à lembrança da morte de alguém: “o acaso vai me proteger enquanto eu andar distraído…”.

6 – Meditações para depois:

Há muito o senso de espiritualidade, essa busca pela plenitude da vida, transcendendo a experiência ordinária do cotidiano e a insuficiência de si mesmo, tem sido um tema quase que refugiado às religiões ou ao misticismo. Um ônus que recai sobre os ombros da tradição filosófica moderna, que se afastou da sua missão primária de ser um caminho de orientação para a vida. Mas, com ou sem a ideia de Deus, há no coração daqueles que se abrem para o ilimitado um desejo de afirmação da existência do espírito (ou alma) em sua irrestrita autenticidade. Uma rogativa do sujeito concreto e linguístico que requisita múltiplas formas de vitalidade, compreensão e transcendência dos seus limites.

No ato religioso, quando a linguagem é usada, a oração – o ato de orar – assume diferentes formas segundo a tradição ou a singularidade de quem a professa, como hino, reza, súplica, gestualidades etc. Porém, no ato filosófico do diálogo terapêutico também acontecem exercícios espirituais em outra forma de oração. O verbo “orar” tem suas raízes no termo latino oro, que significa “dizer”, “falar”, de onde também se deriva o sentido da oralidade, da fala. De outro modo, orar é proferir uma oração, falar, realizar um discurso, dialogar, fazer da palavra um caminho espiritual para vencer os labirintos de si mesmo e dos outros e expressar a liberdade do pensamento.

É, pois, nesse sentido sublime que o filósofo clínico retoma para si o que lhe cabe desde o princípio, marcadamente a partir de Sócrates: ser e se comportar como um guia espiritual para a autenticidade da existência frente àqueles que lhe solicitam orientação. Para quem desenvolveu os valores éticos da escuta radical, até mesmo nos diferentes silêncios – do não-dito e do inefável – a linguagem se insinua como um delicado convite para a aproximação e o cuidado. Os modos de comunicação são diversificados e surpreendentes. São incontáveis os papéis existenciais que dignificam nossa condição humana. Assim como há pastores, líderes, chefes, mestres, conselheiros, gestores, maestros da infinitude humana, o filósofo clínico se dispõe à partilha terapêutica como um amigo espiritual da reflexão íntima. A Filosofia Clínica é apenas uma de muitas estradas para a espiritualização da vida, exercitando pelo diálogo o sentido da palavra e do ser. É um caminho generoso, de um amor amigo e verdadeiro ao partilhante. É uma estrada belíssima.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COSTA. Valcicléia Pereira da. (2001). O “Daimon” de Sócrates: conselho divino ou reflexão? Cadernos de Atas da ANPOF, n. 1, p. 102-109.

GOYA, Will. (2017). GOYA, Will. A escuta e o silêncio: a história de Laura – Terapia em Filosofia Clínica. 4. ed. Porto Alegre: Editora Mikelis.

_____. (2018). Fazer café, amor e filosofia: a arte de escrever filosofia em poemas. 2. ed. Porto Alegre: Editora Mikelis.

HADOT, Pierre. (2014). Exercícios espirituais e filosofia antiga. Trad. Flávio F. Loque e Loraine Oliveira. São Paulo: É realizações.

LEVINAS, Emmanuel. (2001). Do sagrado ao Santo. Trad. Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

OLEA, Héctor. (2006). O professor Riobaldo: um novo místico da poetagem. Cotia: Ateliê Editorial & Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes.

OLIVEIRA, L. (2013). O amor como estado da alma (páthos) em Plotino. Archai: Revista sobre as Origens do Pensamento Ocidental, n. 10, p. 85-94.

PACKTER, Lúcio & SENDTKO, Gilberto. (Orgs.). (2013). Caderno I: matemática simbólica. Porto Alegre: Instituto Packter.

PLATÃO. (1987). Defesa de Sócrates. Platão. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates; Apologia de Sócrates. Xenofonte. As nuvens. Aristófanes. Trad. Jaime Bruna, Libero Rangel de Andrade e Gilda Maria Reale Strazynski. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural.

SPINELLI, M. (2003). Filósofos Pré-Socráticos: primeiros mestres da filosofia e da ciência grega. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS. SUZUKY, Daisetz Teitaro. (1993). A doutrina zen da não-mente. Org. Christmas Humphreys. Trad. Elza Bebianno. 9. ed. São Paulo: Editora Pensamento


[*] Reprodução parcial do artigo originalmente publicado em SILVA, Ronaldo Miguel; GOYA, Will. [Orgs.] Filosofia clínica e espiritualidade. Porto Alegre: Editora Mikelis, 2018, p. 79 a 128.

[1] OLIVEIRA, 2013, p. 85-94.

[2] SPINELLI, 2003, p. 19.

[3] GOYA, 2017, p. 94.

[4] A Filosofia Clínica igualmente trata da questão da autenticidade na relação de trânsito existencial entre as dinâmicas psíquicas da consciência individual e da consciência uníssona estrutural da coletividade. Uma análise feita a partir do que Lúcio Packter chama de matemática simbólica, segundo uma teoria estruturalista sistêmica própria. Aborda a objetividade de diferentes “patamares autogênicos coletivos”, à semelhança de distintos mundos percepcionais auto-organizados por leis de afinidade, vizinhanças existenciais e constituição própria de compreensão e tessitura da realidade. Um tema valioso de reflexões para além desse capítulo. “Do ponto de vista Funcional, utilizando-se do Aspecto de Densidade, cada Estrutura de Pensamento como um todo se apresenta em um patamar autogênico que corresponde a sua densidade estrutural. Uma EP é tão mais densa quanto mais mecânico for o seu comportamento. O contrário também é verdadeiro…” (Cf. PACKTER, 2013, p. 18).

[5] GOYA, 2017, p. 134.

[6] GOYA, 2018, p. 118.

[7] Não se trata aqui em arbitrar a percepção das coisas como “sagradas” ou “profanas”, qual substâncias intrínsecas em si mesmas ou culturalmente indexadas em preceitos regulatórios sobre a moralidade externa. De forma que a Filosofia Clínica não posiciona ou indica qualquer afirmação da superioridade de uma natureza ideal. Com ênfase, de nenhum modo se pretende afirmar uma teoria de valor substantivo ou um conteúdo ontológico para o termo “espiritual”, o que destoaria por completo dos fundamentos éticos da filosofia de Lúcio Packter, que suspeita e evita parâmetros universais de regulação e controle da subjetividade singular implícitas nas marcações valorativas de normalidade. Por diversas vezes a história demonstrou os perigos de se desejar o mito ontológico do sagrado por si mesmo, seja na territorialização geográfica, nas disputas étnicas, nos objetos religiosos fetichizados e outros tantos. Nesse sentido é de todo compreensível o esforço de dessacralização e censura do pensamento mítico feito por Levinas, a fim de não se calar os diálogos de alteridade. Somente através disso, segundo ele, o ser humano se eleva à verdadeira noção espiritual do transcendente. O culto consagrado ao outro – comumente atribuído ao fenômeno religioso – não deve surgir por impulso entorpecente e sedutor da adoração, mas por uma extrema responsabilidade de cuidados éticos, cuja doçura e educação, próprios de um filósofo clínico (a exemplo pessoal de toda a vida de Lúcio Packter) não são por isso diminuídos. Apenas nesse sentido absolutista e dogmático que institui o fascínio é que se deve rejeitar a interpretação de “sagrado”, por fragilizar o primado do espaço relacional do diálogo humano. Concordando com Levinas nesse ponto, endosso que o respeito à outridade no vínculo partilhante-filósofo clínico não deve ser reificada e adjetivada por tentações idolátricas. Cf. LEVINAS, 2001.

[8] OLEA, 2006, p. 166.

[9] PLATÃO, 1987, p. 17.

[10] COSTA, 2001, p. 106-107.

[11] HADOT, 2014, p. 117-118.

[12] SUZUKY, 1993, p. 52, 53 e 57.

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