ASPECTOS SISTÊMICOS EM FILOSOFIA CLÍNICA:
QUEM É ESSE QUE SE APROXIMA? QUE CLÍNICA É ESSA QUE O ACOLHE?
Beto Colombo
Professor titular de Filosofia Clinica na Universidade do Extremo Sul de Santa Catarina (UNESC). Formado em Filosofia Clínica pelo Instituto Packter/Unesc, e em Teologia para leigos, pela Fucri/Unesc. Formado e pós-graduado em administração pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) e Fundação Getulio Vargas (FGV).
Um indivíduo vive integrado ao meio, sobre o qual age, e do qual recebe ações sobre si. Como diz Packter: “por mais inteligente […] e prodígio que você seja, ainda assim o mundo terá milhões de coisas que você não conhece nem imagina” (2001, p. 19). Na visão sistêmica, o sujeito é entendido a partir de uma ecologia que o considera dentro de um ambiente muito mais amplo que o de causa e efeito percebido por ele. Ainda que não percebido, este ambiente, em sua estrutura e funcionamento, afeta-o, direta e indiretamente. A teoria sistêmica sugere que “as relações são o que dá coesão ao sistema todo, conferindo-lhe um caráter de totalidade ou globalidade”. (Vasconcellos, 2010, p. 199). Lançada muito antes da teoria sistêmica, que data da segunda metade do século XX, bem como da própria Filosofia Clínica, a obra Os Miseráveis (1862), de Victor Hugo, é um exemplo disso. No livro, Jean Valjean, um homem pobre, rouba um pão para alimentar as filhas de sua irmã, e acaba preso. No entanto, mesmo depois de solto, continua sendo visto como ladrão ou ex-condenado. Em busca de um teto numa hospedaria ou de um prato de comida, mesmo podendo pagar, é rechaçado pela cidade. Na sequência, porém, é acolhido pelo bispo – e, na madrugada, rouba a própria igreja que lhe dera abrigo. Novamente, o bispo aceita-o. Diante do gesto, Valjean decide mudar de vida. No entanto, o inspetor de polícia Javert enxerga-o como um homem mau, e continua a persegui-lo. O contexto é simples: um ladrão e um inspetor de polícia, em lados opostos, e com o mesmo propósito de cumprir seu papel em relação às pessoas, e fazer o melhor por elas.
Quem se aproxima do filósofo traz um assunto; e esse “Assunto Imediato” o induz à clínica filosófica. Seu assunto, ainda que imediato, tem força, em seu contexto mais amplo, para conduzi-lo em busca de auxílio. Ao contrário do enredo do escritor francês, aquele que se aproxima é um total mistério; é o “rosto” (LÉVINAS, 1980, p. 270). Para além do elemento fenomenológico que se apresenta, à primeira vista, na história do ladrão e do inspetor, não é a partir do ser dentro de contextos e suas relações que poderemos dimensionar aquele que procura o acompanhamento filosófico. O grande desafio está justamente em estar aberto e recusar-se a entender o conteúdo como designação da compreensão do outro. “O rosto está presente na sua recusa de ser conteúdo. Nesse sentido, não poderá ser compreendido, isto é, englobado. Nem visto, nem tocado” (LÉVINAS, 1980, p. 173). Se a clínica seguir qualquer preceito anterior à própria pessoa, ela não existirá; e a construção de toda a interseção dar-se-á em bases impeditivas ao bom exercício clínico. Num mundo em que ladrões e inspetores procuram ajuda, o espaço da clínica precisa ser de cuidado e acolhimento; sem estereótipos. Não se acolhe o criminoso ou policial, mas a pessoa; qualquer que seja sua historicidade ou seu momento atual. É nessa relação, em que se estabelece a interseção, que é construída a terapia filosófica clínica de cuidado, partilha e acolhimento.
Referências
HUGO, Victor. Os miseráveis. (2 ed.). São Paulo: Moderna, 2012.
LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 1980.
PACKTER, Lúcio. A Filosofia Clínica: propedêutica. Florianópolis: Garapuvu, 2001.
VASCONCELLOS, M. J. E. de. Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. (9 ed.). Campinas: Papirus, 2010.