A ética da hospitalidade no cuidado terapêutico do filósofo clínico
Cadu Nascimento[1]
RESUMO:
Partindo do pressuposto de que o conceito de singularidade é a “coluna vertebral” da teoria e da prática terapêutica da Filosofia Clínica, o presente ensaio pretende abordar a questão da singularidade atrelada à categoria filosófica da alteridade, fundamento de uma ética da hospitalidade. Num polo da relação intersubjetiva, o filósofo clínico vai ao mundo do partilhante na qualidade de hóspede. Por outro lado, o terapeuta também vivencia a hospitalidade do outro em sua própria subjetividade. O sentido de singularidade torna-se, na prática da Filosofia Clínica, uma práxis de alteridade, exercício de uma ética da hospitalidade como condição do cuidado ao outro.
Palavras-chave: Filosofia Clínica. Ética. Hospitalidade. Cuidado terapêutico. Lúcio Packter.
INTRODUÇÃO
A metodologia terapêutica de Packter possui conteúdo, fundamento e método, mas antes de tudo, é uma práxis de alteridade.[2] O presente ensaio pretende abordar, ainda que brevemente, a questão da singularidade, “coluna vertebral” da Filosofia Clínica, atrelada à categoria filosófica da alteridade, fundamento de uma ética da hospitalidade em nossa prática clínica. Num polo da relação intersubjetiva, encontra-se o filósofo clínico que vai ao mundo do partilhante na qualidade de hóspede. No outro polo, está o partilhante que hospeda o terapeuta. O filósofo clínico também vive a hospitalidade do outro em sua subjetividade. O sentido de singularidade nos leva a considerar a Filosofia Clínica como uma terapêutica artesanal da singularidade, evocando do filósofo clínico uma ética da hospitalidade como condição do cuidado ao outro.
O termo singularidade tem sua origem no vocábulo latino singularĭtas, que evoca o sentido do que é pouco frequente, fora do comum ou extraordinário, distinto de elementos que sejam do mesmo género. A singularidade como característica fundamental da alteridade, no contexto do consultório, adquire o significado de irrepetível. Esta compreensão exige de cada um de nós a vivência do páthos, experiência fundante da atitude filosófica que herdamos dos primeiros filósofos gregos. Como proposta terapêutica, a Filosofia Clínica recupera a vivência do pathos em seu conteúdo metodológico como fenomenologia e ética. Assim, a terapêutica proposta por Packter viabiliza ao filósofo clínico a possibilidade de localizar a pessoa em seus endereços existenciais, mapear sua Estrutura de Pensamento, a fim de cuidar dela ao seu modo, no seu tempo, com sua gramática subjetiva, de acordo com seu ritmo e seus contextos de mundo. O conceito de singularidade atrelado à categoria de alteridade, tal como traduzimos em nosso centro de formação (CEFA)[3], é compreendido numa perspectiva de exigência ética da hospitalidade. Nesse horizonte, a Filosofia Clínica é ensinada como uma “terapêutica artesã”, cujo fundamento encontra-se nas categorias filosóficas de singularidade e alteridade, buscando ajudar o partilhante, com suas dores e demandas, visando melhorias subjetivas possíveis em seus contextos de mundo.
A hospitalidade torna-se categoria filosófica, principalmente, com Emmanuel Levinas, sobretudo na obra Totalidade e Infinito, que inspira o presente ensaio. Levinas tem o mérito de considerar a hospitalidade em seu sentido originário, concebendo-a no contexto da relação ética, refletindo um novo sentido de subjetividade. Nos textos levinasianos, o sujeito é visto como morada capaz de acolher o estrangeiro enquanto absoluto em sua alteridade, descrevendo a tensão na dinâmica do acolhimento do outro na relação face a face. Ser humano, em Levinas, é poder existir no mundo como abertura ao outro humano (LEVINAS, 2015, p. 13). A obra de Levinas proporciona fundamento fenomenológico para as reflexões que pretendemos suscitar na perspectiva clínica da terapia sistematizada por Packter. O consultório do filósofo clínico torna-se ambientação da prática ética da hospitalidade da singularidade em um sentido triplo se considerarmos, não apenas a singularidade do partilhante, mas a singularidade do próprio terapeuta e a singularidade da relação intersubjetiva. A interseção se constitui como imprevisibilidade, característica da relação intersubjetiva, já que cada sessão de terapia é única e igualmente irrepetível.
A HOSPITALIDADE COMO ÉTICA E CUIDADO CLÍNICO
No modo como a Filosofia Clínica foi sistematizada encontram-se as principais reflexões da história da Filosofia, do pensamento humano e das práticas terapêuticas, que fornecem base ao processo terapêutico como uma ética de hospitalidade, qualificando a relação de alteridade entre o filósofo e o seu partilhante através da escuta de suas vivências, de seus contextos, de como ela pensa, valora, decide, sente, age, como ela elabora suas cosmovisões, crenças, metas, como se comunica e o modo como estruturou sua gramática subjetiva. Tudo isso considerando a peso subjetivo dos conteúdos determinantes, importantes e de pouco valor, como a plasticidade da estruturação existencial de cada pessoa. Os conteúdos que habitam a pessoa denominamos Estrutura de Pensamento (EP). No Caderno A, Lúcio Packter esclarece que a pessoa não é sua EP. Portanto, nossa pesquisa é um mapeamento do infinito do outro, de seu modo de existir no mundo,
O partilhante que retorna ao consultório depois de um tempo longe da terapia, terá vivenciado novas experiências e, possivelmente sofreu alterações que precisam ser atualizadas pelo terapeuta. Tudo isso exige do cuidador atenção e cuidado no exercício permanente da hospitalidade das diferenças do outro, das circunstâncias, das prováveis alterações dos seus contextos e todas as variações possíveis. A singularidade pode ser compreendida a partir da combinação dos tópicos e submodos que se arranjam, se desarranjam e plasmam novas configurações em sua plasticidade, num infinito de possibilidades e variáveis em seus contextos de mundo, o que faz da Filosofia Clínica uma terapia existencial e artesanal que pede sempre a hospitalidade de novas variantes.
UMA HOSPITALIDADE MÚTUA
Na CEFA consideramos importante esclarecer que recíproca de inversão não é sinônimo de compaixão e alteridade, assim como inversão não significa egoísmo. É possível fazer recíproca de inversão por interesses de publicidade, venda e até a destruição de pessoas e coletividades, assim como encontramos pessoas inversivas profundamente gentis e hospitaleiras. Na hospitalidade ética, a qual somos vocacionados em nossa prática, é “importante destacar que este tópico, acrescido de alteridade e de compaixão, é o mais determinante dos tópicos para o exercício filosófico clínico do terapeuta, de modo a ser capaz da compreensão e do desenvolvimento de uma ética da escuta radical (GOYA, 2020, p. 190).
Tendo em vista as diferenças subjetivas e autogênicas, ir ao mundo do outro na qualidade de hóspede com a recíproca de inversão, implica também o treinamento de saber voltar para o seu próprio mundo. Não temos em Filosofia Clínica a ingênua concepção de que todos os mundos são paraísos existenciais. Podemos constatar, a partir do paradigma e da experiência das singularidades no consultório, que há pessoas que se nutrem de paz e outras de conflitos, e isso envolve a EP do próprio filósofo clínico. O que um considera um paraíso existencial pode ser a representação do pior dos infernos para o outro, independente se partilhante ou terapeuta. Um dos princípios básicos da Filosofia Clínica é reconhecer, pela singularidade, o que é remédio pra uma pessoa, pode ser toxidade para outra. Suspeitar dos universais é próprio da sobriedade que a terapia packteriana nos exige, em sua ética de escuta e cuidado.
No Encontro Mineiro de Filosofia Clínica, que ocorreu online em 2021 devido à Pandemia da Covid-19, perguntei ao Professor Lúcio Packter se a Filosofia Clínica seria uma epistemologia, uma ética ou apenas uma terapia. Lúcio responde que não temos como saber à priori, pois tudo vai depender da intersubjetividade. É a interseção entre partilhante e filósofo clínico que dirá o que é a Filosofia Clínica em cada situação. Em alguns, ela será ética, em outros uma epistemologia, em outros uma filosofia… A ética da hospitalidade abrange também a singularidade da relação intersubjetiva. A vida do consultório, muitas vezes, leva-nos a experienciar a hospitalidade do inusitado, do inesperado e do inédito do outro, da vida e do próprio método da Filosofia Clínica, a partir da intersubjetividade. Nos cursos avançados dos últimos anos, Lúcio Packter tem apresentado questões que exigem mais atenção e cuidado, pois, na interseção com o outro, a exceção poderá vir a ser o caminho mais viável para o processo terapêutico. Na exigência ética de nossa pesquisa, que reconhece a infinitude da alma humana com todas as suas possibilidades e variantes, percebemos que há também algumas pessoas que se abrem a uma outra, justamente por perceber que ela não faz recíproca de inversão. Podemos também encontrar fenômenos capciosos como falsa recíproca de inversão, quando o sujeito pensa que vai ao mundo do outro, mas, o que ocorre é apenas o deslocamento de suas próprias medidas existenciais. Há aqueles que usam o outro para falarem de si. Para nossa ética, a terapia só ocorre por meio do exercício constante da recíproca de inversão e da alteridade. Todavia, pode ocorrer que o único caminho viável seja o de ir ao mundo do outro inversivamente, fazendo recíproca de inversão pela própria inversão (NASCIMENTO, 2021, p. 119).
A atitude ética da hospitalidade da diferença, pode trazer desconfortos e esforços que exijam sobremaneira do filósofo clínico. Nossa clínica é uma práxis de alteridade, todavia, a hospitalidade ética de nossa prática terapêutica não exclui a hospitalidade de si. Precisamos aprender a acolher nossa própria singularidade, nossas propriedades, sejam virtudes, sejam limites, falhas, até nossos próprios erros. Às vezes, precisaremos aprender também a hospedar a “possibilidade de não hospedar”. Cientes das potências e dos limites de nossa própria EP pra saber ir ao mundo do outro, é preciso reconhecermos quando encaminhar o partilhante a outro colega é a decisão mais ética e prudente. No Encontro Nacional de Bragança Paulista em 2022, refletimos sobre “o cuidador do cuidador”. Cuidamos de pessoas, mas quem cuida de quem cuida? Qual espaço existe para a hospitalidade de nossa própria condição? Tal reflexão suscita a dedicação de uma pesquisa mais profunda, mas registramos, desde já, a necessidade de considerarmos, em nossa prática clínica, a ética de hospitalidade de nossa própria singularidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: SABER NÃO SABER
Creio que algumas lições em nossas vidas de terapeutas não virão dos livros, por mais brilhantes que sejam, mas da prática do consultório. Manter viva a atitude filosófica do pathos é o caminho para que não façamos de nossos consultórios uma pseudo-hospitalidade, como no mito de Procusto. É pela atitude permanente do pathos que assumimos o princípio ético da hospitalidade artesã, como arte de acolher o outro à maneira dele como hóspede existencial (GOYA, 2020, p. 74). Essa atitude, simultaneamente fenomenológica e ética do pathos, exige de nós um saber específico: é preciso “saber não saber”. É preciso localizar o outro, mapear a autogenia de sua singularidade. Para isso, precisamos aprender com ele sobre ele, a fim de cuidar dele do seu modo. Não compreendemos esse “não saber” como sinônimo de simples ignorância. O “não saber” faz parte do método como epistemologia, atitude socrática e ética de hospitalidade, convocando-nos à responsabilidade de proporcionarmos uma formação que não deixe de contemplar o valor da sensibilidade ética, gentil e hospitaleira em nossos percursos epistemológicos e em nossa prática clínica.
REFERÊNCIAS
CERBONE, David. Fenomenologia. Petrópolis: Vozes, 2006, 3ª ed.
GOYA, Will. A escuta e o silêncio. Porto Alegre: Ed. MKS, 2020, 4ª ed.
GOYA, Will. Como ouvimos em Filosofia Clínica. Porto Alegre: Ed. MKS, 2017.
HUSSERL, Edmund. Meditações Cartesianas: Introdução à Fenomenologia. São Paulo: Ed. Madras, 2001.
LEOPOLDO E SILVA, Franklin. O outro. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2012.
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edição 70, 2015.
NASCIMENTO, C. E. Tópico 14: espacialidade. In: FERNANDES, Cláudio (org.) Tópicos. São Paulo: Recanto da Filosofia Clínica, 2021.
PACKTER, Cadernos: especialização em Filosofia Clínica. Porto Alegre: Instituto Packter.
[1] Carlos Eduardo S. Nascimento, carinhosamente conhecido como Cadu, é bacharel em filosofia, teologia, licenciado em Filosofia, pós-graduado em Psicologia Clínica (Humanista-Fenomenológica-Existencial), em Psicanálise, mestre em Filosofia e doutorando em Filosofia Clínica. Como filósofo clínico, trabalha como pesquisador, com atendimento terapêutico no Espaço Oásis de terapia online e como professor e supervisor na CEFA (Goiânia, GO) e no Instituto Sendtko (Chapecó, SC). Engajado em campanhas pela valorização da vida e prevenção ao suicídio, participa há muitos anos de conferências e palestras em escolas, grupos de jovens, pais e professores. Pesquisa temas como depressão, ansiedade, pânico, ideação suicida, inclusão, direitos humanos e a diversidade LGBTQIA+. Fruto do desejo de ajudar as pessoas em seus sofrimentos, foi o surgimento do livro “Do Cavalo-marinho ao Beija-flor”, que se encontra na 4°edição.
[2] Segundo Will Goya (2020, p. 67) “a Filosofia Clínica é uma práxis de alteridade que trouxe às psicoterapias todas as visões de mundo já pensadas nesses 2.500 anos de filosofia. Por se tratar de uma autêntica reflexão aberta, crítica a si mesma, ela é capaz de entender a subjetividade de quaisquer indivíduos, sem fugir a uma só manifestação existencial singular de ninguém. Novas filosofias que ainda hão de surgir, endossando possibilidades, só intensificarão seu grau de escuta e o diálogo com as diferenças”.
[3] CEFA, abreviação do centro de estudos de Filosofia Clínica em Goiânia, GO, que recebe o nome de Casa de Estudos Francisco de Assis.