Revista ENFIC

Revista do Encontro Nacional
e Internacional de Filosofia Clínica

Alteridade em Levinas

ALTERIDADE  EM LEVINAS

Evaldo Antonio Kuiava
Universidade de Caxias do Sul – UCS

O esquema da tradição filosófica ocidental: o ser antes do ente, a ontologia antes da metafísica, segundo Levinas, precisa ser invertido. (TI, 38). [1] A liberdade antes da justiça é um movimento dentro do eu que não leva em conta a alteridade. Não tem nenhuma obrigação em relação ao outro. A inversão deve acontecer, a partir de uma relação do tipo não-violenta, isto é, ética, e na qual a linguagem e a bondade têm seu lugar garantido; relação esta em que o eu, ao dirigir-se ao exterior, não abarca o outro, formando a totalidade.  A sociabilidade não pode ter a mesma estrutura do conhecimento. O processo crítico questiona a liberdade do exercício ontológico e a conduz para além da relação teórica. No processo crítico, o outro coloca em questão o eu. O questionamento não vem da espontaneidade da consciência transcendental, mas do outro. Este impugna pela sua presença e exige uma resposta, a qual se traduz em respeito e responsabilidade. O outro destitui o eu autônomo e monológico, fonte de todo o sentido.

Na visão de Levinas, a subjetividade se revela como passividade antes que atividade e como responsabilidade antes que liberdade. Em última instância, ela é habitada pelo outro. A alteridade está como que inscrita na própria estrutura da subjetividade, ou seja, como transcendência que se converte em um movimento em direção ao outro. A relação entre outrem e o eu não desemboca em um número ou em um conceito a priori. Outrem é infinitamente transcendente e estranho. O seu rosto, a sua presença, rompe com o mundo comum a dois e os mantém totalmente separados. Não há como pensar a relação em termos de reciprocidade mútua. Não há simetria entre o eu e o outro. Considerar o outro como um alter ego significa aniquilar a alteridade do outro, sua diferença.

O outro não faz parte do conteúdo de uma consciência, está fora do sistema teórico.  Ele é inteiramente outro, é exterioridade metafísica, verdadeira transcendência que não se integra no horizonte do eu autônomo. A experiência intersubjetiva não é sintetizável; ao contrário, rompe a unidade da apercepção transcendental. Ela não ocorre em uma síntese conceitual, mas no frente a frente dos humanos, na sociedade, no seu significado moral. (EI, p. 81). O autor pensa a relação interpessoal de outro modo: “Não se trata de pensar conjuntamente o eu e o outro, mas de estar diante. A verdadeira união ou a verdadeira junção não é a junção de síntese, mas uma junção do frente a frente”. (EI, p.82).  Essa estrutura não se inscreve em um sistema, configurando-se numa totalidade. Aqui está ausente essa esfera do comum que toda síntese pressupõe. A subjetividade humana é indiscernível. Dessa forma, a alteridade e a dualidade não desaparecem, inclusive na relação amorosa, para serem elevadas na unidade do amor. “A ideia de um amor que seria uma confusão entre dois seres é uma falsa ideia romântica. O patético da relação erótica é o fato de serem dois, e que o outro aí é absolutamente outro”. (EI, p. 62). A relação não neutraliza a alteridade, mas conserva-a. A questão do outro deve ser pensada por outros caminhos.  

Transcender significa ir a direção para o absolutamente outro, como desejo insaciável, mas sem negar o eu, a subjetividade. Ter consciência implica presentificação, posição ante si, mundaneidade, o fato de estar dado. Exposição a sujeição, à compreensão e à apropriação. Mas o outro, o transcendente, escapa à tematização; está para além do ser. A ausência de domínio acontece devido ao caráter absoluto da alteridade. “A distância da transcendência não equivale à que separa, em todas as nossas representações, o ato mental do seu objeto, dado que a distância em  que o objeto se mantém não exclui a posse do objeto, isto é, a suspensão do seu ser”. (TI, p. 41). A intencionalidade, diante da alteridade, se apresenta, não como apropriação, mas como respeito, como acolhimento prático da ação moral.

A questão que se coloca aqui diz respeito à necessidade de fazer uma nova leitura da identidade do eu, da subjetividade e de sentido, o que equivale a uma mudança de direção da origem do significado, aquém da consciência transcendental. Para Levinas a exigência ética não se impõe a uma consciência já constituída; ao contrário, precede-a, sendo o próprio princípio de individuação do sujeito. Isto implica uma nova revolução copernicana, um novo giro ético. “Pensar o infinito, o transcendente, o estrangeiro, não é, pois, pensar um objeto. Mas pensar o que não tem os traços do objeto é na realidade fazer mais ou melhor do que pensar”. (TI, p. 41). Na verdade, é sair de si, do seu egocentrismo, e ir a direção ao outro, sem qualquer correlação e sem comunhão intencional no mesmo ser, na mesma natureza.

A transcendência se exprime como uma forma de relação ética, fora de qualquer espécie de domínio teórico. Ela desborda a esfera cognoscível, uma vez que o conhecimento, enquanto imanente, sempre a monopoliza.  O transcender é o fundamento da possibilidade de uma relação com o outro. A partir da transcendência metafísica, a oposição tradicional entre teoria e prática tende a desaparecer. A relação com a alteridade não se reduz a uma mera reflexão do eu em sua estrutura monológica e solipsista. Ao contrário, o rosto do outro exige um compromisso ético que se concretiza na realidade, sem qualquer mediação conceitual a priori, isto é, como responsabilidade sem limites.

O acontecimento ético possui uma estrutura relacional entre o mesmo e o outro. O encontro entre ambos se caracteriza pela proximidade, sem que haja um terceiro que se interponha como intermediário. Em sua análise descritiva da epifania do rosto, Levinas destaca que nada amortiza a intensidade do contato traumático com a alteridade metafísica que aparece como um dado primeiro e último, que não se pode ser nem lógica nem objetivamente contestado. A relação de proximidade, para Levinas, é irredutível à relação sujeito-objeto. O encontro ou a relação entre o mesmo e o outro adquire uma significação em que os problemas de conhecimento e de verdade referem-se a um sentido prévio, ao acontecimento do encontro e do diálogo.

O diálogo, embora tenha sido sempre um elemento da filosofia, é anterior a universalidade do diálogo político, como um passo ao universal. A proximidade ou o encontro entre o mesmo e o outro é uma relação dialógica que ‘obriga’ a entrar no diálogo. Trata-se, em primeiro lugar, de uma relação em que o outro interpela o mesmo, ao invés do mesmo considerar o outro como um inimigo que se aproxima, como um objeto a ser considerado ou alguém que precisa ser persuadido para concordar com os seus argumentos, sob o ponto de vista de uma moral vigente ou de certos critérios de verdade, sejam eles justificáveis ou não. Nesse sentido, a presença de um interlocutor não se reduz a presença de um objeto em que o olhar do eu determina e sobre o que anuncia um determinado juízo predicativo. Evidentemente, isso não significa que o interlocutor não possa ser abordado tematicamente e servir de suporte de um juízo qualquer. Mas, nesse caso, já não seria mais aquele em que o eu aborda no diálogo, senão aquele que é considerado como número num conjunto útil para qualquer desígnio realizável técnica ou tematicamente.

O cumprimento do encontro na revelação da alteridade é o protótipo de toda relação de proximidade. A moral recebe sua dignidade suprema a partir do face a face, da relação entre duas pessoas. É dessa relação heterônoma que se instaura uma racionalidade ética. Nesse sentido, o papel da filosofia consiste em dar vida a essa racionalidade, cujo princípio fundante e fundamental não é mais a busca de conhecimento. O encontro frente a frente é uma presença que não é representação, não é objetividade ou desvelamento do ser. O encontro não tem lugar de forma alguma na unidade do ego cogito ou na unidade neutra, abarcando dois interlocutores; ele transcende a racionalidade formal, o dito da linguagem das gramáticas, a figuração do mundo factual.

O fundamento da filosofia é, em princípio, a experiência ética que se realiza na relação com a alteridade.  A significação vem de fora, para além do ser, fazendo com que a interioridade do eu não seja a fonte última de sentido do humano. O autor procura descobrir como a ética, enquanto relação concreta com o rosto do outro, pode produzir-se como razão; opondo-se a toda cultura da autonomia humana, a razão solipsista, que tem a pretensão de ser soberana e, por isso mesmo, muitas vezes, não segue o caminho da paz. Eis a problemática: “Razão até o fim ou a paz entre os homens”. (EN, p. 250). Para a paz não é suficiente desvelar todas as coisas em busca da verdade, reduzindo toda transcendência à imanência do eu pensante. O dever-ser deriva e é descoberto na inter-relação, na relação com o outro. Os direitos do outro não podem ficar à mercê do eu e da sua boa vontade. É mister, portanto, um pensamento que responda ao infinito ético, expresso no rosto do outro homem, momento em que a consciência perde sua simetria na relação.

A transcendência infinita brilha no rosto do outro. O rosto manifesta-se como exterioridade e como resistência absoluta a qualquer intencionalidade. Segundo Levinas, “a identidade da consciência pura traz nela, à guisa do ‘eu penso’, entendido como intencionalidade – ego cogito cogitatum [eu penso o pensado] – toda transcendência, toda alteridade: ‘toda exterioridade’ se reduz ou retorna à imanência da subjetividade que ela própria e em si mesma se exterioriza”. (EN, p. 257-8). O autor contesta que a síntese do saber, a totalidade do ser abarcada pelo eu transcendental, isto é, a presença captada na representação e o conceito sejam as instâncias últimas da significação moral. Por isso, busca a transcendência, sem reduzi-la à imanência do ego cogito; no encontro com o rosto, com o outro, para além da intencionalidade.            

A dimensão ética começa a partir da significação do rosto, desmistificando a filosofia do ego cogito e da ipseidade, em detrimento de um outro modo de pensar a alteridade, a partir de uma pura exterioridade. Nesse contexto, o outro, na relação, não surge como objeto de tematização. Ao contrário, o brilho da exterioridade, da transcendência no rosto do outro, destitui a consciência como fonte de todo o sentido, ou seja, o eu soberano, no seu isolamento exclusivo de cogito e de seu reino unificante e tematizado, é posto em questão. Essa é uma situação na qual a totalidade se quebra e, ao mesmo tempo, é condicionada.

O rosto é “a epifania do que se pode apresentar diretamente a um eu e, por isso mesmo, também exteriormente”. (EDE, p. 173). Embora se exprima no sensível, a realidade significada por ele constitui uma outra ordem. Trata-se aqui de uma presença viva desde além e acima do fenômeno. A relação com o outro pode ser dominada pela percepção; no entanto, aquilo que é rosto não se reduz a ela. A manifestação do rosto ultrapassa a sua forma que, contudo, o manifesta. Ele possui um surplus, um excedente, isto é, uma significação própria. “O rosto fala. A manifestação do rosto é o primeiro discurso. Falar é, antes de tudo, este modo de vir por detrás da sua aparência, por detrás da sua forma, uma abertura na abertura”. (EDE, p. 194). Em outras palavras, o rosto é o infinito: “O infinito no qual toda a definição se decompõe, não se define, não se oferece ao olhar, mas assinala-se; não como tema, mas como tematizante, como aquele a partir do qual toda a coisa se pode fixar identicamente; mas também ele se assinala assistindo à obra que o assinala; e não se assinala somente, mas fala”. (TI, p. 101). Essa fala é linguagem original, um dizer que precede o pensamento ou imagem preconcebida.

O rosto é o fato originário da racionalidade. Por outro lado, é fundamento e guia ético, na medida que é ‘discurso’. Ao mesmo tempo, põe em questão a autonomia do eu e o chama à responsabilidade. A conscientização dessa situação, na qual o exercício da liberdade do eu é questionado, e quando na relação ocorre o acolhimento do outro, Levinas chama de consciência moral. (TI, p.103).  Levinas entende a relação como anterior a qualquer mediação conceitual. Ao longo de todo o seu percurso filosófico, ele procura ir além das mediações, a fim de alcançar o mais alto grau de transparência na relação com o outro. O outro está sempre para além de qualquer ideia que se possa ter sobre ele. O outro enquanto um em si, transcendente, não é o empírico ou o fenomênico, mas a significação que dele se origina. Eis o humano!

Referências

LEVINAS, Emmanuel.  De 1’existence à 1’existant. Paris: Vrin, 1947 (1978).

_____. Totalité et Infini.  Essai sur 1’extériorité. Haia: M. Nijhoff,  1961 (1974).

_____. Difficile Liberté.  Essais sur le judaisme. Paris: Albin Michel, 1963.

_____. Humanisme de l’autre homme. Montpellier: Fata Morgana, 1972.

_____. Autrement qu’être ou au-delà de 1’essence. Haia: M. Nijhoff, 1974.

_____. De Dieu qui vient à 1’idée. Paris: Vrin, 1982 (1986).

_____. Éthique et Infini. Dialogues avec Philippe Nemo. Paris: Librairie Arthème Fayard  1982.

_____. Transcendance et Intelligibilité.  Suivi d’un entretien. Genebra: Labor et Fides, 1984.

_____. Entre nous. Essais sur le penser-à-l’autre. Paris: Grasset & Fasquelle, 1991.


[1] Para as obras de Levinas, utilizaremos as seguintes abreviaturas: AE para Autrement  qu’être ou au-délà de l’essence; DVI para De Dieu qui vient à l’idée; EDE para En découvrant l’existence avec Husserl et Heidegger; EI para Éthique et Infini; EN para Entre nous; HAH para Humanisme de l’autre homme; NP para Noms propres; TI para Totalité et Infini.

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